Mandar É Pouco, Humilhar É Que Dá Prazer: Como o pequeno poder alimenta a fome de grandeza de quem nunca foi servido

Há algo de fascinante e aterrador na maneira como o poder se acomoda em corpos que jamais foram convidados à mesa — mas agora, finalmente, estão com a caneta. Caneta esferográfica, com tinta falhando, é verdade — mas, para quem sempre foi ignorado na fila, a chance de riscar um nome (ou uma esperança) com autoridade absoluta já basta.

Se o grande poder produz tiranos com palácios, aviões e sorrisos institucionalizados, o pequeno poder produz carcereiros de corredor, despachantes emocionais, síndicos de papel timbrado e fiscais de portão. Gente que não precisa de trono, basta um banco giratório e uma pilha de documentos para negar. Gente que, quando ganha um carimbo, carimba a própria frustração no formulário alheio.

Sim, leitor, estamos falando da mais poderosa e invisível engrenagem da miséria emocional: o microfeudo da autoridade desproporcional.

Quando o crachá pesa mais que a consciência

Não é difícil reconhecer o arquétipo. Ele aparece de manhã cedo, com o andar decidido e o crachá reluzente, e mal disfarça o prazer de anunciar que “só com autorização da chefia”. Nem tentamos argumentar: o tom de voz já está calibrado no modo “quem manda aqui sou eu”. A regra existe, mas quem interpreta é ele. O manual é claro, mas a página que interessa está dobrada.

Nesses momentos, a inteligência se esconde, a empatia tira férias, e o vocabulário se resume a três frases: “não pode”, “não sei” e “volte outro dia”.

Essa microtirania é traiçoeira porque se camufla de ordem. E o que é ordem senão a possibilidade de controlar a desordem dos outros, sem nunca olhar para a própria?

O poder que não é poder: é revanche

Há uma cena que nunca me abandona — mesmo agora, com olhos fechados e memória afiada. Estava numa sala de aula de uma universidade, eu e outros tantos alunos, quando o técnico do áudio-visual chamado para “ajustar o equipamento”, subiu ao palco com a postura de quem ia reger uma sinfônica. Não bastava verificar o som, cabos e imagem. Era preciso humilhar a professora que, momentos antes, havia “mexido no cabo errado”.

Ele não disse: “está tudo certo agora”. Ele disse, alto e claro: “quem não sabe, não mexe”. E saiu com o ar triunfante de quem finalmente teve sua plateia — mesmo que por trinta segundos, mesmo que só para bater palmas internas. Sim, porque o pequeno poder não quer melhorar nada. Ele quer ser notado.

E é aí que mora o abismo: gente ferida, quando se vê em posição de comando, quer ferir de volta. Não contra quem causou a dor, mas contra quem está por perto. Oportunidade é vingança disfarçada de atribuição funcional.

O poder financeiro de um supervisor de cadastro

O mundo financeiro também tem seus micro-imperadores. São aqueles que controlam a liberação de um crédito, a aprovação de um benefício, a inscrição num programa público ou até o acesso a uma informação que deveria ser pública, mas virou moeda de vaidade. Você chega com todos os documentos, todas as comprovações, tudo impresso em papel timbrado — e ainda assim, o veredito é: “vou ver com calma e te retorno”. E nunca retorna.

Esses microjuízes da vida alheia não lidam com cifras bilionárias. Lidam com o tempo dos outros. E é aí que se tornam poderosos: ao atrasar, omitir, atrapalhar, dificultar. O dinheiro pode até ser seu, mas o caminho para acessá-lo depende de quem está sentado do lado de dentro do balcão. Acredite: o jogo de poder mais cruel é o que não custa caro, mas custa a sua paciência.

O prazer de negar um direito

Nada é mais embriagante do que dizer “não” para alguém que só está pedindo o que já é seu. Ali, naquele instante, a negativa não é burocrática: é erótica. É uma espécie de sadismo administrativo que transforma servidores em soberanos, analistas em deuses e recepcionistas em barreiras emocionais.

Você só queria entender por que seu benefício foi negado. Sai de lá com um trauma novo, um sermão passivo-agressivo e a sensação de que é você quem está errado por ter tentado.

Eu mesma, anos atrás, vivi isso na pele. O banco onde eu tenho conta desde meu priemiro emprego se recusou a emitir um extrato completo acessível e até hoje se recusa a corrigir barreiras de acessibilidade no homebroker, depois que perdi a visão. A atendente, com a fleuma de quem interpreta normas como se fossem versículos sagrados, me disse: “A senhora pode pedir ajuda de alguém com visão”. É claro, minha filha. E já aproveito e peço a essa pessoa para viver no meu lugar também?

Poder de bolso vazio

O curioso é que esses tiranetes de guichê costumam ser os mais inseguros. Estão cansados, mal pagos, sobrecarregados — mas, ao menor sinal de deferência, vestem a couraça do autoritarismo. Não para resolver o problema. Mas para evitar que o outro perceba o próprio.

Quanto mais frágil o trono, mais alta a voz do regente. E quanto mais inseguro o servidor, mais rígido o sistema que ele inventa para te engessar.

Porque no fundo, minha cara leitora, meu caro leitor, ninguém quer apenas mandar. Mandar é pouco. O que move essas almas ressecadas é a vontade de humilhar — sem parecer que está humilhando. Afinal, a grosseria com uniforme ganha o status de “procedimento padrão”.

Os tiranetes de elevador

Outro dia, um rapaz me perguntou se eu já tinha notado como certos profissionais ficam mais cruéis justamente quando sabem que ninguém está prestando atenção. Claro que já notei. É no elevador vazio, no corredor silencioso, na ligação sem gravação que o autoritarismo mostra os dentes.

O funcionário que resolve implicar com o tom da sua voz. A atendente que diz que você “não se encaixa no perfil”. O Coordenador de Área que sorri na frente do Diretor e te cobra com cinismo por e-mail. E o chefe — sempre tão cordial — que afirma estar “do seu lado” e “entender perfeitamente os desafios da cegueira”, mas decide marcar uma reunião na véspera do Natal para que você, a única profissional cega da equipe, justifique publicamente por que precisa de condições diferentes de trabalho. Afinal, segundo ele, acessibilidade é um tema “sensível”, que precisa ser debatido “com transparência e espírito de equipe”. A pauta é sutil: colocar em votação, ali mesmo, entre rabanadas corporativas e panetones de performance, se você deve ou não continuar atuando como a profissional cega que se tornou — ou se seria mais conveniente que voltasse a fingir que enxerga. Durante a reunião, sua fala é interrompida várias vezes pelo próprio chefe, que afirma, com voz doce e autoridade indigesta, que “não é necessário explicar como é a vida de uma pessoa cega”, porque ele já compreende tudo. Mas é preciso aceitar, segundo ele, que o mundo — e a organização — não são acessíveis, e que isso, veja bem, não é problema da equipe, mas da realidade. Mantive a elegância, embora estivesse fula da vida. E com a mesma firmeza com que aprendi a caminhar sem ver, caminhei também pela reunião: consegui que meu pleito fosse respeitado. Não por caridade ou comoção — mas porque é um absurdo completo exigir que uma pessoa cega trabalhe como se enxergasse. E mais absurdo ainda é achar que isso seja sinônimo de igualdade.

Eles têm pouco. Mas o pouco que têm, transformam em régua. E essa régua não mede competência, não mede gentileza, não mede justiça. Mede ego.

Quando a régua vira vara

É por isso que sempre que alguém me pergunta como lidar com essa síndrome do pequeno poder, minha resposta é uma só: não entre no jogo. Mas, se entrar, jogue com ironia e estratégia.

Finja que acredita, sorria como quem não precisa, concorde como quem não cede. Porque essas figuras se alimentam da reação. Dê a elas o desprezo disfarçado de gentileza — e vá embora com sua dignidade intacta.

E se, por acaso, for possível recorrer, recorreremos. Mas sem o grito. Porque o grito é deles. O nosso é silêncio que constrange. É argumento que não precisa de decibéis. É a lucidez que não pede carimbo.

Conclusão

Há quem diga que o poder corrompe. Discordo. O poder apenas revela. Mostra quem já era mesquinho, mas precisava de crachá. Mostra quem já era inseguro, mas precisava de farda. Mostra quem já era vazio, mas precisava de um balcão para fingir que é inteiro.

O pequeno poder é uma lente de aumento para os buracos da alma. E acredite: quem precisa gritar para mostrar autoridade já perdeu o respeito antes mesmo de abrir a boca.

Porque, no fim, o verdadeiro poder é aquele que não precisa ser exercido — ele simplesmente é reconhecido. E isso, meus caros, nem o carimbo da chefia consegue falsificar.

— Ho-kei Dube

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