A Meritocracia da Sopa: Como Servir um Banquete com Talheres de Plástico
Hoje um tema diferente. Só que não.
Se me permitem o sarcasmo antes mesmo do café, vamos começar com uma pergunta bem temperada: se todos começamos do mesmo ponto, por que uns estão de Ferrari e outros ainda na fila do sopão? Não me venham com "foco, força e fé", porque até fé requer estômago vazio e alguma conexão com o Wi-Fi celestial.
A meritocracia, essa madrinha de casamento das reformas liberais, gosta de aparecer vestida de linho puro, como se fosse uma filosofia limpinha e promissora. Mas, de perto, tem cheiro de roupa passada a ferro por alguém que nunca passou da lavanderia para o palco. Ela é bonita no papel, no discurso, nos PowerPoints de CEOs motivacionais — e absolutamente desastrosa quando aplicada num país onde algumas crianças nascem com tablet na mão e outras mal têm papel higiênico na escola.
Falam que quem se esforça vence, mas esquecem de dizer que o esforço, quando não rende aplauso nem pão, vira fadiga crônica. E que alguns aplausos costumam ser comprados — ou herdados. Duro é convencer quem nunca pagou o próprio boleto de que o talento não basta quando o elevador social está em manutenção desde o governo do Marechal Deodoro.
O Estado, esse eterno réu no tribunal da opinião pública, ora é acusado de ser gastador, ora de ser omisso. Quando distribui renda, chamam de assistencialismo. Quando corta, é "ajuste fiscal". Quando educa, está doutrinando. Quando ignora, é “liberdade de escolha”. A verdade é que há décadas nosso sistema público está à espera de uma reforma que não seja só no PowerPoint da campanha eleitoral. Mas reforma mesmo, daquelas que não cabem no Excel, mas fazem diferença na vida das pessoas.
As escolas públicas, que já foram palcos de saber, hoje se tornaram depósitos de corpos adolescentes mal alimentados e professores mal pagos. O giz virou objeto de museu. O apagador, um símbolo nacional do que tentamos varrer para debaixo do tapete. Enquanto isso, os filhos da elite aprendem três idiomas e fazem coding com seis anos. E nós, da plebe alfabetizada, ficamos aqui fingindo que o ENEM é democrático porque é impresso em braile também.
Falam em privatizar tudo — energia, educação, saúde, o ar que você respira e, em breve, talvez sua própria indignação. Mas não se iluda: a iniciativa privada quer consumidores, não cidadãos. Quer gente treinada, não educada. Quer um funcionário que aceite “cultura da empresa” como se fosse religião, e não alguém que ouse perguntar por que o lucro bate recorde enquanto o vale-refeição não acompanha nem o preço do pão francês.
E aí entra o debate da renda mínima — aquele palavrão que deixa liberais nervosos como se estivessem assistindo a um casamento coletivo financiado com verba pública. "Mas e a meritocracia?", gritam, do alto de suas sacadas gourmet. "E o incentivo ao trabalho?", questionam, entre uma taça de vinho argentino e a planilha do rendimento da Faria Lima.
O problema — e ele vem de berço — é que o capitalismo, quando deixado sem rédeas, sem marcos regulatórios ou contrapesos sociais, comporta-se como um faroeste de cifras: veloz, agressivo e cego. Nesse cenário, o sistema tende a produzir uma massa constante de pessoas em vulnerabilidade, não por sadismo, mas porque a engrenagem gira mais fácil com uma mão-de-obra abundante e barata. A produtividade sobe, os lucros multiplicam-se, mas o fosso entre quem produz e quem consome vira abismo. O mercado exige que se compre — muito, sempre — mas entrega salários que mal cobrem o feijão e jamais chegam à taça de vinho.
É por isso que redistribuição de renda não é ideologia — é engenharia de estabilidade. Não se trata de utopia solidária, mas de manutenção estrutural: evitar que o prédio caia enquanto os andares de cima brindam. Os próprios liberais mais sofisticados reconhecem isso, como demonstrou o economista que propôs o “imposto de renda negativo” nos anos 1960 — o mesmo que mais tarde virou símbolo de ortodoxia de mercado e aversão a qualquer sopa solidária. Ironia? Não exatamente. Apenas o reconhecimento, por quem de fato entende o jogo, de que sem alguma redistribuição, o tabuleiro vira destroço.
Mas eis que surgem os arautos do “não dá pra pagar todo mundo”. Gente que não se incomoda em pagar R$ 9 bilhões em renúncia fiscal para combustíveis fósseis, mas se revolta com R$ 300 reais na mão da mãe solo. Dizem que isso estimula a vagabundagem. Que a pobreza, na verdade, é uma escolha — como se fosse o plano mais básico da Netflix.
Dizem que os beneficiários da renda mínima "preferem ficar em casa vendo TV do que trabalhar". Mas esquecem de contar que o trabalho que lhes sobra é precarizado, desvalorizado e, muitas vezes, humilhante. E, mesmo assim, continuam trabalhando. Porque, spoiler: pobre trabalha. Trabalha muito. O que não faz é enriquecer. Porque enriquecer, como bem ensinou a matriarca de JP Morgan, "é coisa para quem comanda, não para quem executa".
Falemos, então, da tal educação de base — sempre prometida, nunca entregue. A desculpa da vez é que “leva tempo demais”. Sim, leva. Assim como plantar árvores ou educar filhos. E ainda assim fazemos (às vezes mal, mas fazemos). O problema é que governar pensando em 20 anos não dá voto. O povo quer resposta até a próxima fatura do cartão. E o político quer selfie com a placa de inauguração. Ninguém quer ser o engenheiro da fundação. Todo mundo quer cortar a fita.
Enquanto isso, os professores são tratados como se tivessem optado por uma vocação monástica. “Ah, mas é uma profissão linda”, dizem. Sim, e mal remunerada. Que beleza tem quando não há salário decente, nem condições mínimas de trabalho, nem respeito? Chamar de "missão" não resolve a equação. Resolve, talvez, a culpa coletiva de quem continua votando em projetos que desmontam a educação pública com a delicadeza de uma retroescavadeira.
E por fim, o voto — esse direito que alguns tratam como se fosse mimo de Natal. Discutimos se o voto deve ser obrigatório ou facultativo. Mas esquecemos de discutir se ele é acessível. Se a campanha é plural. Se as opções de candidatos realmente representam o espectro social do país. E mais: se o financiamento de campanha é democrático ou apenas uma forma de consagrar a plutocracia com verniz de eleição¹.
Nos Estados Unidos, onde o voto é facultativo e o lobby tem CNPJ, os candidatos precisam primeiro convencer os financiadores — os eleitores vêm depois, se vierem. O resultado? Eleições tão caras quanto um divórcio em Beverly Hills, financiadas por empresas que transformaram o Congresso num puxadinho corporativo. Os políticos saem das urnas com mais dívidas do que promessas, e passam o mandato divididos entre os dividendos da ExxonMobil e os jantares de gala da Pfizer. E o povo? Bem, o povo segue esperando o Messias da vez, enquanto o Uber estaciona e o iFood esfria na sacola.
Aqui, tentamos fazer diferente. Mas com um sistema político que exige sacrifício pessoal e doações de campanha com CNPJ, a chance de alguém “do povo” chegar ao poder é mais rara do que bolsa de valores com empatia.
Conclusão? Ainda não. Porque conclusão, no Brasil, é sempre adiada por uma comissão parlamentar de inquérito.
Mas se me permitem um último gole de acidez, aqui vai: quem defende meritocracia sem igualdade de oportunidades está, na verdade, defendendo um jogo de cartas marcadas. Quem acha que educação é gasto e não investimento, está apostando na burrice como política de Estado. Quem vê a renda mínima como esmola, nunca pegou fila para receber um salário-mínimo que mal dá para manter o botijão cheio. E quem acha que o voto deve ser privilégio, não entendeu que democracia, quando bem feita, não escolhe o mais rico — mas o mais votado.
Se você ainda acha que o problema do país é o excesso de direitos, talvez esteja do lado errado da fila — e do lado certo do privilégio.
Mas tudo bem. A fila anda. E a história também.
— Ho-kei Dube.
¹ Dizem — entre goles de café azul importado e pílulas de ômega 3 envelhecido — que certa manhã o jovem herdeiro dos Morgan revelou à mesa o desejo de ser presidente. A mãe, com a serenidade de quem conhece o manual completo do poder, retrucou: “Meu filho, presidência é ofício de empregados. Sua missão é mandar neles.” Desde então, conta-se entre os bilionários que governar é coisa para quem ainda precisa apertar a própria gravata.
Nota explicativa: O conceito de 'imposto de renda negativo' foi descrito pela política britânica Juliet Rhys-Williams nos anos 1940 e, mais tarde, defendido pelo economista americano e ganhador do Prêmio Nobel, Milton Friedman.
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