Quando o Preço é Teto, Mas a Burrice é Chão
Certa feita, ao escutar um desses mantras da sabedoria de bolso dos investidores raiz — algo como “preço importa!” —, imaginei imediatamente um adesivo colado no para-choque de um carro popular: “Se você pode ler isso, está muito perto... do prejuízo”. Porque, veja bem, o problema nunca foi o preço. O problema é o entusiasmo desavisado com ele, como se fosse um oráculo de LED piscando "compre-me!" na vitrine do apocalipse corporativo.
Estamos falando aqui de um conceito tão subestimado quanto o bom senso em grupos de WhatsApp de investidores iniciantes: o tal do “preço teto”. Sim, essa entidade meio mística, meio matemática, que promete nos dizer quando uma ação está “barata”. Ou melhor, quando parece barata, como aquele brigadeiro de micro-ondas que custou 1,99 no supermercado: doce, sim. Razoável, talvez. Saudável? Nunca foi a proposta.
Para os desavisados — e para os avisados também, porque nunca é demais —, preço teto é o valor máximo que você se permitiria pagar por uma ação com base no dividendo que ela promete pagar. Uma espécie de limite moral financeiro, do tipo “daqui não passo, porque minha dignidade de investidora que faz conta ainda existe”. Mas, como todo limite moral em tempos de Black Friday da Bolsa, ele é frequentemente ignorado por puro tesão de planilha.
Teto é conceito. Já a cegueira... é escolha.
Vamos com calma. Imagine que sua carteira de ações seja um jantar elegante. O preço teto seria aquele seu convidado sofisticado que chega na hora, traz vinho e ainda comenta a sinfonia de Mozart que está tocando no ambiente. Agora, os outros indicadores — endividamento, retorno sobre patrimônio, consistência nos lucros, governança, etc. — são os outros elementos da festa. A iluminação, a música, o cheiro do assado. Você não faz um jantar só com um convidado, por mais charmoso que ele pareça no LinkedIn.
O que me leva à analogia favorita dos consultores de investimentos: o carro. Claro, porque nada diz “investidora sofisticada” como imaginar-se trocando marcha em plena Dutra. Mas sigamos. Você olha para o velocímetro: 130km/h. Está rápido? Talvez. Agora descubra que está em terceira marcha. Ahá. O motor está urrando como um gato preso no porta-malas. Está gastando mais combustível que o carro do Neymar em arrancada. Isso quer dizer que você vai gastar mais, parar mais vezes e correr mais riscos. Agora, veja o indicador do combustível: cheio. Bonito, mas inútil, se o carro está prestes a fundir o motor antes do pedágio.
Indicadores isolados são isso: ilusão de controle. O investidor vê o preço teto, se anima, esquece que a empresa está prestes a explodir em escândalo, crise de governança ou uma delação premiada que poderia ser lida no Jornal Nacional em horário nobre. Mas como está “abaixo do teto”... Ah, o teto. Sempre tão sedutor quanto um ex tóxico que manda mensagem no fim do mês com desconto no streaming.
Preço teto é o que você aceita pagar. Mas o custo real... ah, esse é revelado depois.
Fórmulas, queridos. Todo mundo adora uma fórmula. Preço teto projetivo = (DPA projetivo) / 6%. Parece até um feitiço de Hogwarts, mas na verdade é só matemática vestida de gravata. Acontece que essa fórmula parte do pressuposto de que os dividendos projetados vão mesmo cair na sua conta. E que o conselho da empresa não surtou, que os resultados continuarão vindo, que o caixa não virou areia movediça. Ou seja: uma aposta. E, convenhamos, se for pra apostar em algo incerto, eu prefiro loteria. Pelo menos a gente ainda ganha um troco da Caixa se errar quase tudo.
O investidor que se agarra a esse número mágico como se fosse um terço financeiro está cometendo um pecado dos grandes: o pecado da preguiça analítica. “Mas está 30% abaixo do preço teto!” grita o eufórico no grupo do Telegram. Sim, e a empresa acabou de ser processada por cartel, perdeu o CEO, e os relatórios trimestrais parecem capítulos mal editados de uma novela mexicana. Mas tem gente que, se visse uma ação por R$0,99 com yield de dois dígitos, vendia a sogra pra comprar. Spoiler: a sogra provavelmente teria retorno mais constante.
Preço baixo pode ser sinal de oportunidade. Ou só reflexo de desgraça em andamento.
Há um vício emocional aí — um fenômeno conhecido entre nós, os cegos metafóricos do mercado: o desconto encantado. Achamos que porque está barato, é bom. É um clássico do pensamento wishful: “Talvez seja minha chance de enriquecer!” Ou, talvez, seja sua chance de aprender na marra o que é prejuízo, de verdade, com planilha e tudo.
Quando o preço de uma ação cai, isso pode significar três coisas: (1) o mercado surtou (normal, acontece às segundas-feiras); (2) a empresa está com algum problema conjuntural, mas temporário; ou (3) a vaca já foi pro brejo, afundou e o CEO está vendendo o brejo por pedaços. Adivinhe qual das três hipóteses é mais comum? Isso mesmo: depende. E aí mora o inferno do investidor preguiçoso — aquele que só olha preço teto, mas não lê as entrelinhas do drama empresarial.
Quer comprar bem? Então não olhe só o número. Olhe a história por trás dele.
Comprar uma ação é como entrar em um casamento com comunhão universal de bens. Você herda tudo: o bom humor da empresa nos tempos de crescimento, a ressaca moral nos ciclos de queda, o tio problemático que mora no balanço patrimonial, e aquela cláusula esquisita de "podemos suspender dividendos se bater um vento estranho do mercado".
Você quer comprar uma ação? Ótimo. Mas saiba onde ela atua. Entenda seu setor. Veja o histórico de dividendos. Pergunte-se: essa empresa sobreviveu às últimas crises? Como se comportou durante a pandemia? Ela tem uma política clara de distribuição? E mais: quem são seus donos? Porque às vezes a ação está barata por um bom motivo — tipo herança de família disfuncional com testamento suspeito.
Fazer conta é bom. Pensar, então, é revolucionário.
Se você quer viver de dividendos no futuro, ótimo. Mas saiba que dividendos são filhos de uma relação estável entre empresa, lucro e governança. Não são esmolas caídas do céu. São como flores que brotam de raízes profundas. E se a raiz está podre, a flor pode parecer linda… até murchar na sua corretora.
Por isso, tenha sua estratégia. Faça sua lição de casa. Monte sua reserva de oportunidade — aquele cofrinho esperto que não está na planilha da moda, mas salva sua dignidade quando o mercado vira o jogo. Aproveite os momentos de pânico coletivo para comprar projetos sólidos com desconto. Mas nunca, jamais, ache que preço teto é luz divina. Ele é farol. Não é destino.
No fundo, o mercado é uma grande escola. Mas só aprova quem aprende com a dor.
Se você chegou até aqui, parabéns. Ou você já tomou tombo de preço teto ou está prestes a tomar e decidiu se vacinar com ironia e inteligência. Em ambos os casos, saiba que está em boa companhia.
E antes que alguém venha com a ladainha de que “dividendo não enche barriga”, eu digo: barriga vazia também não sustenta carteira emocional. E lucidez — essa sim — é o único ativo que, uma vez adquirido, só se valoriza.
No mais, que seus tetos sejam calculados com lucidez, que seus pisos sejam firmes e que você nunca esqueça: preço é o que se paga. Valor é o que se entende.
E burrice… essa é sempre mais cara que qualquer ação.
=Ho-kei Dube
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