Não Tenho Dinheiro, Mas Tenho Parcelas. (Como crianças aprendem a se endividar antes mesmo de fazer tabuada)

Vamos começar com um tapa de luva de pelica e açúcar refinado: se seu filho aprendeu a parcelar o chocolate em três vezes no débito, parabéns — ele teve o melhor MBA do mercado: a convivência com você.

A escola pode muito, mas não pode tudo. Pode ensinar a tabuada da multiplicação, mas não consegue reverter o déficit emocional de uma infância inteira cercada por boletos vencidos, cartões estourados e frases do tipo: “A gente trabalha tanto, merece esse mimo”. Merece? Talvez. Aguenta? A fatura diz que não.

Não é falta de conteúdo escolar. É excesso de incoerência domiciliar. A criança aprende observando. E o que ela vê é que o carrinho cheio no supermercado é mais importante que a conta cheia no fim do mês. Vê também que há um padrão de vida sendo financiado por um padrão de desespero. Isso sim é educação financeira — do tipo que se absorve antes mesmo de saber o que é uma taxa de juros.

Não estou dizendo que todo pai é um influenciador da ruína financeira. Mas convenhamos: se a infância é a janela da formação de caráter, então ela também é o espelho retrovisor dos nossos delírios de consumo. E que reflexo temos deixado?

A geração que herdou boletos e normalizou o carnê

Ah, a mágica do crediário: o ritual moderno de enterrar a autonomia em parcelas mensais com juros disfarçados de conveniência. Crescemos vendo os adultos “se virando”. O problema é que agora somos os adultos — e seguimos nos virando até quebrar.

Não é que as famílias estejam erradas por consumir. Mas ensinar às crianças que viver é parcelar é quase uma ofensa à própria noção de liberdade. Porque quem cresce achando que cartão de crédito é extensão da renda, nunca vai experimentar o gosto azedo da escolha consciente.

E não adianta vir com a falácia do “vou ensinar pelo exemplo e deixar meu filho com um cartão pré-pago de mesada”. Se esse cartão é abastecido por um orçamento furado e ansioso, tudo o que a criança vai aprender é que dinheiro vem de um gesto mágico no celular — e desaparece com a mesma facilidade.

Professores: os heróis sem armadura do apocalipse orçamentário

Antes que alguém resolva culpar a escola, um aviso aos desavisados: os professores brasileiros fazem milagre. São pagos com migalhas, recebem formação fragmentada e ainda precisam ensinar sobre finanças pessoais a alunos que mal têm caderno — e às vezes nem jantar.

Quem diz que “é só colocar educação financeira no currículo” nunca entrou numa escola pública no meio do ano letivo, com lâmpada queimada e quadro rachado, tentando falar sobre planejamento de longo prazo para uma turma com fome de tudo, menos de juros compostos.

Esses professores, que insistem em ensinar mesmo com a dignidade parcelada, merecem mais que palmas. Merecem um sistema inteiro que pare de fingir que a culpa é deles quando a criança não aprende a poupar. Porque, sejamos sinceros, ninguém aprende a controlar o impulso se em casa o impulso é quem manda.

O problema não é a dívida. É a banalização da dívida.

Não sejamos ingênuos: endividar-se, em certos contextos, é inevitável. Mas é diferente contrair dívida por necessidade e construir dívida por estilo de vida. A segunda opção virou padrão. E pior: virou piada.

“Quem não deve, não tem crédito.” “Pobre sem dívida é pobre desconfiado.” “Parcela de 89 reais por 24 meses? Isso nem é dívida, é presente.” Sim, o Brasil é o país onde o financiamento virou jargão de amor-próprio. Onde a cultura do consumo não é só incentivada — é romantizada.

A questão é: o que a criança está aprendendo com isso?

Ela aprende que viver é dever, não ser. Que ter coisas é mais urgente que ter paz. Que o silêncio da estabilidade não faz tanto barulho quanto o apito da maquininha.

Educar para a escassez, sim — mas com elegância.

A chave da educação financeira infantil não está na planilha. Está na conversa. Mas não aquela conversa de adulto que acha que criança é boba. Falo da conversa elegante, firme, mas sensível. Do tipo que diz:

  • "Isso não cabe no nosso orçamento agora, e tá tudo bem."

  • "Temos que escolher entre isso e aquilo. Qual é a sua prioridade?"

  • "Esse brinquedo é legal, mas o dinheiro também serve pra outras coisas. Que tal pensar juntos?"

São frases pequenas, mas que moldam mentalidades. Plantam a ideia de que nem tudo se tem na hora — e que isso não é fracasso. É liberdade de escolher, com tempo e consciência.

Ensinar sobre dinheiro é, no fundo, ensinar sobre desejo, frustração e esperança. Sobre o tempo necessário para alcançar. Sobre o valor das coisas e, principalmente, das não-coisas. Se seu filho aprende a esperar, ele já está investindo. Não no Ibovespa, mas na própria paciência.

Dinheiro não educa. Mas escancara a falta de educação.

Sabe aquela mãe que diz “não tenho dinheiro” toda vez que o filho pede algo? Ela não está mentindo. Está ensinando a se esconder. Porque dizer apenas isso é amputar a possibilidade de diálogo. Melhor seria dizer: “O dinheiro existe, mas ele tem outros compromissos agora.” Ou: “Podemos pensar num plano para conseguir isso?”

Isso muda tudo. Muda o lugar da criança na conversa. Ela deixa de ser o problema e passa a ser parte da solução. E, quem sabe, começa a entender que dinheiro é ponte — não muleta, nem buraco.

A boa notícia é que o ciclo pode ser quebrado.

Já vi, em muitas periferias, crianças ensinando os pais. Crianças que aprendem numa ONG sobre poupar e depois vão para casa e perguntam: “Mãe, você tem metas?”. Crianças que mostram aos adultos que não existe vergonha em dizer não, só existe vergonha em não tentar entender o porquê do sim.

O futuro da saúde financeira do país não será salvo por um aplicativo. Nem por uma reforma ministerial. Será salvo, talvez, por uma criança que aprendeu cedo que riqueza mesmo é poder dizer “não agora” para dizer “sim depois”.

Esse é o tipo de herança que vale a pena.

Porque ensinar uma criança a poupar não é privá-la. É libertá-la.

E se isso começa dentro de casa, então o maior gesto revolucionário pode ser esse: dizer ao seu filho que ele não precisa ter tudo — mas que pode aprender a escolher o que realmente importa.

Não vai ser fácil. Nunca é.

Mas nada que uma boa conversa na fila do pão — sem parcelar o pão — não possa começar a resolver.

—Ho-kei Dube

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O Investidor Não Compra Dados — Compra Histórias (e Clichês Bem Embalados)

Uma carteira de investimentos para cada situação? Só se for para cada crise existencial.

O Finfluencer Não É Seu Amigo: Como Não Deixar Que Seu Dinheiro Caia no Golpe do Afeto Financeiro