Startup de Dia, Colônia Penal à Noite: Entre rooftops e metas inatingíveis, o mercado infantiliza, glamoriza e devora quem ainda acredita em propósito embalado a vácuo.
Não é que mentiram para você. Mentiram em cima de você. Com slogans, vídeos motivacionais, powerpoints com emojis e um RH vestido de unicórnio. Mentiram com aquela entonação doce dos comerciais de margarina vegana e com a convicção dos coachs que parecem saídos de uma peça infantil encenada dentro de um banco. Mentiram com a crueldade de quem sorri enquanto avalia metas inalcançáveis, e com a pressa de quem precisa te moldar em três meses para a próxima demissão humanizada.
Você não fracassou. Você apenas acreditou.
Acreditou que a felicidade corporativa existia, que o rooftop era o novo altar e que o crachá vinha com propósito embutido. Acreditou que o "espírito jovem" era um ativo negociável, e que sua autoestima de 23 anos sustentaria sozinha o peso do Excel, das metas e da cobrança disfarçada de cultura.
É compreensível. Afinal, era tudo tão... fofo. Um escritório com bichos, um home office com aromaterapia, um time diverso que faz dancinhas. Até o plano de saúde era instagramável.
Mas o mercado — esse senhor de terno slim e coração de pedra — nunca foi um lugar para abraços. Foi você quem confundiu a vitrine com lar.
O lounge da liberdade corporativa
Quem inaugurou a era do “trabalho com sentido” deveria ser processado por propaganda enganosa. Disfarçaram a exploração com ergonomia e coloriram a opressão com ambientes pet friendly. O problema não é a presença dos animais — é a ausência de vergonha.
Vendiam o cargo como um “desafio”, o salário como “experiência”, o contrato como “jornada de transformação”. E você, jovem alma de LinkedIn, aceitou a fantasia: acreditou que estar exausto aos 26 era sinal de sucesso e que trabalhar de pijama significava autonomia, não vigilância remota 24h.
Entre um call motivacional e outro elogio passivo-agressivo, você percebeu: o tal do trabalho remoto é remoto só no nome. Ele invade sua cozinha, sua sala, sua cama e, sem cerimônia, sua libido.
O happy hour virou happy horror.
Os 30 são os novos 50 — só que sem plano de aposentadoria
A era do sucesso precoce criou o fracasso antecipado. Aos 28, você já deveria ser sócio. Aos 29, já deveria ter um negócio escalável. Aos 30, se ainda não tiver uma palestra no TED, melhor se mudar para Marte.
Mas não se preocupe: aos 40, você será considerado velho demais. O mercado é muito claro quanto a isso — ele apenas disfarça melhor do que você.
O corte etário agora é um corte seco. A curva da juventude é um escorregador: começa com luzes neon e termina com o silêncio do desligamento por e-mail. Nenhuma empresa avisa que, para cada plano de carreira, há um abismo de obsolescência embutido. E que a tal “flexibilidade” servia para facilitar a troca de peças — não para melhorar sua postura no yoga.
Ansiedade como benefício corporativo
Há uma nova moeda em circulação: o pânico. Silencioso, disfarçado de “desafio estimulante”, ele corrói os dias com prazos insensatos e a alma com feedbacks ambíguos. A startup cool virou manicômio fashion. Ninguém grita, mas todo mundo range os dentes.
Os jovens executivos e executivas não tomam café: tomam ansiolíticos. O burnout virou rito de passagem, o colapso emocional, motivo de stories e a sobrecarga, um troféu invertido.
A geração que foi treinada para “dar conta de tudo” descobre, aos poucos, que não há “tudo” a ser dado conta. Só há tarefas, demandas, metas e reuniões em espiral — e o eterno medo de não parecer feliz o suficiente na câmera do Zoom.
Porque o novo pecado capital é parecer desanimado no Slack.
Empreendedorismo ou autoexploração?
Empreender virou a senha mágica para escapar do assédio corporativo. Só esqueceram de avisar que, do lado de fora, a coisa é ainda mais perversa. Agora, além de ser explorado, você deve se explorar sozinho — com entusiasmo.
O empreendedor moderno não tem CLT, não tem férias, não tem SUS para seu CNPJ. Mas tem frases motivacionais coladas no espelho, planilhas que ninguém usa e um senso de urgência que beira a psicose.
Os mais bem-sucedidos não dormem. Os medianos se endividam. Os demais vendem cursos sobre “como fracassar com elegância”.
O capital sorri. Ele não precisa mais pagar rescisões.
A meritocracia como teatro trágico
Se você trabalhar muito, estudar muito, entregar tudo com excelência e aceitar críticas com humildade... talvez consiga manter o emprego por mais dois ciclos. Mas não se engane: a meritocracia é a nova astrologia corporativa — só serve para justificar o que já está decidido.
Não basta ser bom. É preciso parecer infalível, mesmo quando está prestes a desmaiar.
A performance virou condição de permanência. E a permanência, um looping de fingimentos. Tudo isso em nome de um sistema que premia sorte, networking e sobrenome, mas insiste que tudo depende de você.
Mentira. Mas com feedback contínuo.
Uma mentira sistematizada
Não é uma farsa isolada. É uma coreografia de ilusão. O sistema inteiro precisa que você acredite: que vai dar certo, que só depende de você, que essa dor é crescimento.
A mentira foi refinada em décadas de discursos publicitários, programas de trainee, oficinas de autoconhecimento e experiências gamificadas. O RH virou coach, o coach virou gestor, o gestor virou curador de propósito. Todos dançando em volta da fogueira de vaidades e indicadores.
E você? Você virou um avatar — com KPIs e ansiedade rodando no mesmo sistema operacional.
Adultos em loop infantil
Enquanto isso, nas entrelinhas da vida, a maturidade virou opcional. Crescer é um verbo adiado com urgência. A mesma empresa que exige alta performance oferece massagem relaxante e comanda festas temáticas de super-heróis. O uniforme é informal, mas o controle é total.
O jovem é tratado como mascote: precisa estar feliz, produtivo, comprometido e... agradecido.
A criança que não pode escolher o sabor do próprio sorvete agora precisa decidir o rumo da carreira, mas sem parecer hesitante. O resultado? Uma geração de adultos infantis — confiantes para emitir boletos, frágeis para cancelar planos.
Quando a autoestima virou protocolo
As escolas, por sua vez, foram treinadas para fidelizar pais, não formar filhos. A educação virou marketing de experiência: boletins viraram relatórios afetivos, reprovar virou violência, e o “sistema” virou algo a ser contornado com relatórios psicológicos.
O que era formação virou adaptação.
Os pais, por sua vez, se tornaram reféns de sua própria culpa. Culpados por não estarem mais presentes, supercompensam com presentes, psicólogos infantis e consultas semanais para discutir o comportamento da professora.
O que era criação virou curadoria.
O mercado como paródia de si mesmo
O mercado atual é uma sátira que não se assume. Ele glamoriza a miséria emocional e estiliza a exaustão. Ele vende liberdade no formato de planilha, diversidade em tons pastéis e autenticidade sob o jugo do algoritmo.
Não é exagero: a nova escravidão é esteticamente clean.
As corporações tornaram-se templos da performance simbólica: você pode usar piercings, desde que não questione a hierarquia; pode levar seu cachorro, desde que não reclame da sobrecarga; pode ser você mesmo, desde que caiba no branding.
A diversidade virou banner. A saúde mental, uma assinatura premium.
Epílogo: É preciso desobedecer com elegância
Não há liberdade possível no centro do palco iluminado pelo mercado. A única saída — se é que há — é pela tangente. Desobedecer, resistir, rir com desdém. Não como revolta infantilizada, mas como lucidez adulta.
Sim, continue trabalhando. Sim, pague seus boletos. Mas jamais aceite o enredo pronto. Porque, se é para se esgotar, que seja por algo que ao menos valha sua presença — e não apenas sua entrega.
Como eu disse outro dia a uma jovem leitora: o sistema quer que você brilhe até se apagar — e depois agradeça pela oportunidade.
Pois eu prefiro acender em silêncio, sem me consumir para iluminar reuniões que jamais serão lembradas.
Seja bem-vinda ao mercado. Tire os sapatos, sorria para o crachá — e guarde sua lucidez a sete chaves. Porque aqui, quem pensa demais... é visto como problema de clima organizacional.
— Ho-kei Dube
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