O Passado Também É Volátil, Principalmente Quando Está Em PDF: Como o passado financeiro virou um PowerPoint com transtorno dissociativo?
Algumas pessoas mentem com a boca. Outras, com os dedos. E há aquelas que preferem mentir com uma planilha. São as mais perigosas: usam gráficos como álibis, retroprojeções como áureas santificadas e médias históricas como bengalas para justificar toda sorte de dogmas financeiros.
Há quem diga que o passado é imutável. Essas almas puras, que provavelmente ainda acreditam em comunicados do RI como literatura honesta, esquecem que o passado é editável. E não só por governos autoritários ou por roteiristas de novela revisionista, mas por gestores, economistas, investidores — e até por você, leitor ou leitora, que já limpou o extrato para apresentar um histórico “menos caótico” à terapeuta ou ao cônjuge.
Não se engane: o passado financeiro é uma colcha de retalhos reencapada a cada ciclo de mercado. É a arte do “não foi bem assim”, o balé da “reestruturação contábil”, o sarau da “mudança metodológica”. E quando os números não cooperam com a narrativa, trocam-se os números — ou trocam-se as narrativas.
Quando o “retroativo” vira narrativa
Você já viu isso acontecer. Aquela empresa que décadas atrás quase foi à lona hoje é celebrada como exemplo de “visão estratégica de longo prazo”. A instituição que surfou o boom das comodities externas, mas derreteu ao menor suspiro do dólar, agora é descrita como “resiliente em ciclos adversos”. O fundo que pegou carona numa bolha e saiu antes do estouro se transforma, magicamente, em “gestão ativa com foco em valor”.
É impressionante a capacidade do mercado de reescrever suas biografias. O fracasso, quando amortecido pelo tempo e pela memória seletiva de alguns poucos analistas, ganha novo nome: “aprendizado”. E a imprudência vira “ousadia calculada” — desde que o vento tenha mudado a favor.
É claro que não há pecado em aprender com os erros. O problema começa quando os erros são apagados e substituídos por versões retocadas, envernizadas e institucionalmente amnésicas. O passado, nesse contexto, é como um balanço auditado por um poeta épico: mais preocupado em construir mitologia do que refletir a realidade.
O corte seletivo da memória contábil
Você já ouviu falar de “mudança de critério contábil”. É como se sua balança doméstica resolvesse, por livre iniciativa, começar a considerar “massa óssea espiritual” no seu peso ideal. E, acredite, a CVM muitas vezes assina embaixo.
É assim que os números somem, renascem ou mudam de nome. Um passivo vira “provisão estratégica”. Um prejuízo é chamado de “investimento em inovação”. E um endividamento estrutural assume o pseudônimo de “estrutura de capital otimizada”. Se Freud estivesse vivo, abandonaria a psicanálise e abriria uma casa de análise: o mercado é o melhor lugar para estudar o ressentimento.
O que está em jogo não é apenas uma manipulação pontual. É uma engenharia simbólica profunda. É a prática deliberada de transformar fatos desconfortáveis em marcos de superação. É apagar o incêndio da planilha com extintores de storytelling.
A história financeira como vitrine de poder
Nas empresas, como nos Estados, quem conta a história controla a percepção de valor. Já reparou como as apresentações para investidores mais parecem peças de teatro do que demonstrações financeiras? Projeções para 2050, gráficos suavizados com médias móveis, indicadores que só fazem sentido dentro de certos contextos — que, por sua vez, são apresentados com a leveza de uma performance de ilusionismo.
E quando algum número antigo ameaça escapar do porão, trata-se logo de aplicar um efeito “sepia”: relativiza-se, contextualiza-se, explica-se... até que pareça não ter existido. A inflação daquele ano? Não conta, foi exógeno. O prejuízo? Uma decisão estratégica de curto prazo. A troca de CEO a cada dois trimestres? Ciclo de renovação de talentos.
Não é memória, é maquiagem. Não é análise, é liturgia de poder. E, às vezes, quanto maior a empresa, maior o séquito de sacerdotes dispostos a canonizar os lucros e enterrar os fracassos sob sete camadas de PowerPoint.
E quando o mercado esquece... você paga
O problema é que, quando a história é falsificada em larga escala, os efeitos se tornam reais. Você compra uma ação crente de estar embarcando numa locomotiva, quando na verdade está num carro alegórico. E, ao primeiro sinal de fumaça, descobre que o que parecia motor era só espuma — e nem era da melhor qualidade.
E então vem o susto, o pânico e o “ninguém podia prever”. Mas podia, sim. Se alguém estivesse olhando para os relatórios antigos com olhos de quem lê para entender — e não para confirmar.
Aliás, é por isso que insisto: quem estuda o histórico de distribuição de dividendos com a atenção de quem lê um diário íntimo (e não um folder turístico), entende mais da alma da empresa do que muito analista grafista de ocasião. O passado, quando lido com espírito crítico, revela mais do que o presente deseja mostrar.
A verdade como variável dependente
A verdade, no mundo financeiro, não é absoluta. É relacional, oportunista e frequentemente calibrada pelo humor do momento. A mesma empresa que hoje é louvada por “ser verticalizada” era, ontem, criticada por “não ser asset light”. O mesmo banco que hoje é punido por “focar demais em dividendos futuros” era, antes, premiado por “remunerar o acionista com consistência”.
Não se trata de incoerência. Trata-se de conveniência. O mercado é um espelho mágico: mostra o que o investidor quer ver, desde que ele esteja disposto a aplaudir.
E quem tenta nadar contra essa maré é logo acusado de “não entender o novo ciclo”. De ser retrógrado, saudosista ou — a ofensa suprema — “value investor raiz”.
Pois bem: sou. E com orgulho.
Um conselho que não muda: desconfie de quem muda demais
A próxima vez que você ouvir a palavra “reestruturação”, respire fundo. A tradução pode variar de “desmanche silencioso” até “início do fim”. E quando disserem que a empresa “mudou de perfil”, lembre-se: mudar pode ser ótimo — desde que não signifique virar outra coisa completamente diferente do que prometeu ser.
Há uma diferença entre evoluir e disfarçar. Entre ajustar a rota e trocar o destino. Entre aprender com o passado e reescrevê-lo para que ele pareça ter sido visionário.
E é por isso que, neste blog, o passado é sempre interrogado. Não com saudosismo, mas com lucidez. Porque, como dizia minha bisavó, que chamarei de Sinhá para facilitar a pronúncia — que nunca investiu em nada, mas entendia de gente: “quem muda a própria história com facilidade demais, talvez não mereça um final feliz.”
Pós-escrito de quem lê até o fim:
Talvez você esteja se perguntando: “mas então, como confiar em qualquer narrativa financeira?”
Resposta breve: não confie. Cruze. Compare. Investigue. Ou, como eu costumo dizer:
“Quem só lê o presente, assina o contrato sem ler a cláusula de saída.”
E quem reescreve o passado como se fosse release de marketing, cedo ou tarde, terá que lidar com o futuro — e esse, meu bem, não aceita revisão de texto.
— Ho‑kei Dube
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