A Glamourização do Cansaço e Outras Mentiras com Hora Marcada: Por que fingir pressa virou mais lucrativo do que investir bem — e mais viciante do que reclamar do chefe em looping eterno?
Não sei o que me espanta mais: a pressa ou o orgulho que a acompanha.
A cada esquina — ou aplicativo — há alguém contando com satisfação mórbida quantas reuniões já sobreviveu no dia. Como se o número de compromissos fosse sinal de relevância existencial. Como se estar indisponível fosse um novo tipo de inteligência.
A pressa virou capital simbólico. E o tempo, um imposto progressivo: quanto menos você tem, mais importante parece ser. Não por acaso, as pessoas mais ocupadas do planeta são aquelas que se orgulham disso em mensagens de voz com velocidade 2x.
Curioso. Durante anos, achamos que o luxo seria ter tempo. Mas a vida corporativa — sempre ela — tratou de inverter essa lógica com o afinco de quem estica elástico até virar coleira.
Hoje, quem aceita um convite de última hora é “desocupado”. Quem está disponível é “suspeito”. E quem diz “posso sim, vamos agora” vira alvo de desconfiança. Deve estar em decadência. Ou pior: deve ser pobre.
Elogio ao cansaço como novo colar de pérolas
Nas reuniões que nunca terminam, escuto o mesmo mantra com sotaques variados:
“Minha agenda está impossível.”
“Não paro nem para respirar.”
“Estou no olho do furacão.”
Fico imaginando quem é que sopra tanto esse furacão.
Porque, convenhamos: se alguém tem tempo de repetir para dez pessoas por dia que não tem tempo, talvez tenha.
Mas não se trata de tempo cronológico. É um teatro. A pressa virou espetáculo performático — com seu figurino (fone bluetooth e cara tensa), seu cenário (planilhas abertas em janelas que ninguém lê) e sua trilha sonora (notificações interrompendo a concentração e até o raciocínio).
Vivi o suficiente para saber que o excesso de tarefas não é sinal de importância, e sim de fuga. A agenda lotada é a desculpa preferida de quem não quer se perguntar para onde está indo. Afinal, se parar para pensar, corre o risco de perceber que está correndo por nada.
E, como eu costumo dizer: não é todo mundo que suporta o eco do próprio vazio.
O mercado que monetiza sua culpa
Nos vendem cursos de produtividade como se fossem rosários de salvação.
Nos empurram agendas otimizadas como se fossem amuletos mágicos contra o fracasso.
E ainda nos ensinam a acordar às 5h como se a aurora tivesse cláusula de performance.
Mas o que está em jogo, minha cara leitora, meu caro leitor, não é o tempo. É a culpa.
A culpa de não render o suficiente. De não ser essencial. De não estar fazendo “mais”.
No fim, o mercado não vende ferramentas. Vende castigo. E se você, como eu, já viveu o bastante para colecionar frustrações com glamour, sabe: há um prazer masoquista em se sentir ocupado. Um gozo neurótico em “estar sempre sem tempo”.
Trabalhei com gente que se ofendia com a sugestão de descanso. Parecia insulto. Como se dormir fosse um gesto subversivo. Como se estar cansado fosse um pecado moderno — desde que o cansaço não seja produtivo.
E essa é a palavra mágica: produtividade. O novo batismo da alma.
Já não basta existir. É preciso performar.
A agenda imaginária como patrimônio simbólico
Conheci uma senhora com três compromissos no dia: uma sessão de pilates, uma visita aos netos e um café com amigas. Ao fim da tarde, declarou-se exausta. Com sinceridade.
Eu, que havia enfrentado fila em cartório, reunião com contador e mais duas horas explicando dividendos projetivos para um grupo de investidores juvenis que confundiam “lucro líquido” com suco detox, fiquei tentada a rir.
Mas não ri. Porque entendi.
A exaustão dela era tão legítima quanto a minha. Porque o que cansa não é só a tarefa, mas o peso simbólico que ela carrega.
Para ela, ser solicitada, trocar de roupa três vezes, mudar de ambiente, socializar — tudo isso equivalia ao meu dia de relatórios e estratégias.
Mas aqui entra a virada de chave: ela não se orgulhava disso. Apenas reconhecia.
Já os novos herdeiros do cansaço — aqueles que imprimem agenda falsa em papel timbrado emocional — esses, sim, merecem nossa análise.
Não querem tempo. Querem parecer importantes. E, para isso, sacrificam até o domingo.
O domingo, minha cara, já não é o que era. Virou véspera da performance.
“Dinheiro não dorme” — mas você deveria
Tenho um conhecido que repete essa frase como um hino: “Dinheiro não dorme.”
Toda vez que ele diz isso, penso na quantidade de besteira que ele já fez por dormir pouco.
O mercado gosta de te fazer crer que há sempre algo acontecendo, sempre uma chance escapando, sempre um concorrente correndo à frente.
Mas a verdade, meu caro leitor, é que não há fila para o sucesso. Há fila para o colapso.
A agenda lotada demais, o celular quente, a sensação de que o mundo vai acabar se você desligar — tudo isso é só marketing da ansiedade.
E o mercado adora gente ansiosa. Porque ansiosa compra, vende, troca, gira.
Gente serena segura. E quem segura assusta o sistema.
A farsa do “profissional indispensável”
Conhece aquele que nunca tira férias? Que responde e-mails às três da manhã? Que diz com orgulho que trabalha “mais de sessenta horas por semana”?
Pois bem. Ele será o primeiro esquecido assim que o sistema não precisar mais dele.
Porque o que é indispensável mesmo, minha cara, é a capacidade de se tornar inútil de vez em quando.
Ninguém que não sabe descansar pode tomar boas decisões. Nem na vida, nem nos investimentos.
Se você precisa provar seu valor a cada reunião, talvez esteja apostando na moeda errada.
A hora feliz dos que não têm vergonha da alegria
Convidei duas amigas para um café. Uma respondeu:
“Pode ser… mas só se você prometer que não vai achar que estou desocupada.”
A outra emendou:
“Se meu chefe souber que estou com tempo livre, ele inventa um relatório só para me salvar do tédio.”
Veja só que ponto chegamos: precisamos justificar a felicidade.
Mas eu confesso, de onde escrevo — e não vejo: eu gosto de gente que aceita o convite na hora. Que não se esconde atrás da pressa. Que não tem vergonha de dizer: “Sim, estou livre. Vamos viver?”
Gente 'desocupada', no melhor sentido da palavra.
Gente que não precisa se fingir ocupada para merecer amor.
Gente que entendeu que o tempo é finito, mas a pressa, muitas vezes, é fingida.
Porque o relógio é uma ficção com cronômetro
Afinal, de que adianta ter uma agenda lotada se o espírito está em greve?
De que vale um cronograma impecável se o vazio segue pontual?
E de que serve tanto compromisso se o maior deles — consigo mesmo — continua pendente?
O problema nunca foi a falta de tempo.
O problema é a falta de coragem para parar.
E pensar.
E sentir.
E escolher.
A pressa é a fuga elegante dos que não querem se encarar no espelho.
Mas não se preocupe: mais cedo ou mais tarde, o espelho chega.
E ele cobra com juros compostos.
— Ho-kei Dube
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