O PIB Não Usa Bengala: Como a Economia Finge Que Pessoas com Deficiência Não Existem
Comecemos pelo óbvio que ninguém gosta de dizer em voz alta: a economia oficial tem baixa visão. Enxerga taxas e gráficos com nitidez, mas tropeça nos corpos que não cabem na régua. Se o PIB é um telão em 4K, a vida de quem precisa de acessibilidade costuma ser lida num rádio chiado. E, quando a imagem falha, o sistema faz aquilo que o sistema faz de melhor: culpa o usuário.
De cada cem pessoas que circulam no planeta, algo como dezesseis vivem com alguma forma de deficiência — um em cada seis de nós. Não é minoria técnica; é maioria ignorada pela contabilidade do costumeiro “não dá”. Não precisa acreditar em mim: é o que os dados internacionais indicam, com todas as letras e sem romantismo.
“Mas e o Brasil?” — pergunta quem gosta de números como quem gosta de ver para crer. O retrato oficial mais recente aponta algo na vizinhança de um dígito, dependendo da régua metodológica aplicada. É aqui que a lupa ética entra em cena: a forma de perguntar define o que se enxerga. O Censo 2022 aferiu funcionalidade por domínios (ver, ouvir, caminhar, compreender) e linha de corte específica; muda-se o corte, muda-se o contingente. Foi assim que o percentual oscilou e muita gente sumiu do mapa estatístico — não da vida real. O próprio órgão estatístico explica o desenho das perguntas e alerta para diferenças de comparabilidade. Tradução: cuidado com conclusões apressadas; medições mudam, a população não desaparece.
Agora, o que essa miopia coletiva custa — em dinheiro contante, não apenas em dignidade? Estados que deixam pessoas com deficiência fora do jogo formal abrem mão de um pedaço respeitável do próprio crescimento. Estimativas internacionais calculam que a exclusão pode custar alguns pontos do PIB. É a matemática do desperdício: quando se empurra talento para a margem, a renda nacional emagrece.
Sim, há ganho de causa e ganho de caixa quando o assunto é inclusão. Mas, como todo assunto sério, isso exige sair do trio preguiçoso “rampa, braile e prioridade no guichê” — e entrar na engenharia do dinheiro. Acessibilidade não é peça de decoração, é infraestrutura econômica.
Gosto de pensar no sistema financeiro como um metrô em horário de pico. Todo dia, milhões tentam entrar nos vagões do crédito, da poupança, do investimento, do seguro. A plataforma é estreita. O trem, previsível. E o alto-falante repete: “Por sua segurança, tire a autonomia do bolso e passe-a pela catraca”. Aí vem o primeiro empurrão: “selfie obrigatória” para validar identidade. Pergunto: obrigatória para quem e em que condições? Para quem tem espasticidade, tremor, baixa visão, ou simplesmente mora onde o 4G falha, a “facilidade” vira muralha. O fetiche da biometria que não lê todos os rostos é o parente tecnológico do balcão que não alcança todas as mãos.
Depois, os aplicativos: minimalistas, lindos, e cegos para leitores de tela. Botões sem rótulo, fluxos escondidos, contrastes caprichosos só para o designer. A versão “acessível” chega como quem pede desculpas por existir: faltam funções, sobram passos. É o equivalente bancário de abrir uma porta nos fundos e chamar de porta principal.
Enquanto isso, o crédito assistivo — linha para adaptar casa, adquirir tecnologia de apoio, customizar transporte — é vendido como favor esporádico, não como produto de prateleira com preço decente. E seguro? Aprendam uma expressão que rende bem: exclusão por letra miúda. Alguns produtos ainda precificam a deficiência como risco intrínseco — quando o verdadeiro risco é o ambiente que não dá condições para a pessoa viver.
E o investimento? Ah, o investimento… Admiro as carteiras que cabem em telas brilhantes, mas prefiro as que cabem na vida real. Tenho dito que riqueza é, antes de tudo, poder decidir o próprio ritmo. Quem vive em constante negociação com barreiras externas aprende depressa: fluxo de caixa não é planilha; é respiração. Por isso, repito: inclusão financeira não é “bonito ter”. É vetor de autonomia, portanto de produtividade — e produtividade, no capitalismo, é o nome civil da liberdade.
Mas não se preocupem: eu não vim aqui só para assoprar brasas na sensibilidade social do investidor e ir embora. Vim propor uma coisa simples, quase municipal, porém transformadora. Chamei de Protocolo V.I.S.T.A., porque dinheiro sem vista (no sentido de horizonte) fica míope demais para prosperar.
V de Verificação de barreiras: todo produto financeiro deve nascer com teste de acessibilidade real — não uma checklist de palco. Um comitê com pessoas que usam leitores de tela, que navegam por teclado, que têm baixa visão, que precisam de linguagem simples. Não é consultoria simbólica. É coautoria. A cada nova versão, revalidação. Errar não é crime; insistir em erro é custo.
I de Interoperabilidade humana: múltiplos canais equivalentes — e eu insisto na palavra equivalentes. Se a validação por selfie impede uma parte dos clientes de transacionar, é obrigatório oferecer caminho alternativo com o mesmo nível de segurança, sem humilhação e sem fila preferencial que dura o dobro.
S de Soluções sob medida com preço justo: crédito para adaptação de moradia, compra de equipamentos, tecnologias assistivas e reformas no ambiente de trabalho, com prazos calibrados, carências reprogramáveis, garantias factíveis. Não é caridade: é mercado mal atendido.
T de Transparência assistiva: contratos em formato acessível desde a origem (texto digital navegável, leitura fácil, opção de áudio), e simulação que respeite ferramentas assistivas. Transparência que não pode ser lida não é transparência; é vitrine.
A de Autonomia patrimonial: instrumentos de procuração financeira com granularidade (autorizar alguém a resolver algumas tarefas, não todas), trilhas claras de auditoria e reversão fácil. Isso protege quem precisa de apoio e protege o patrimônio — a ordem é esta.
Não há nada aqui de anticapitalista. É só capitalismo com óculos no grau certo.
“Mas, Ho-kei, cadê o mercado?” — pergunta o leitor apressado, pulando parágrafos como quem pula degraus. O mercado está onde sempre esteve: onde há demanda e margem. Pessoas com deficiência compram, produzem, poupam, investem, herdam, empreendem. O que falta não é cliente; é imaginação. E, onde falta imaginação, sobram mitos. O mito de que adaptar é caro (caro é refazer sem parar). O mito de que um público assim é pequeno (multiplique famílias, cuidadores, redes). O mito de que inclusão é tema de marketing (é tema de engenharia de processos).
Quem insiste que acessibilidade é custo ignora uma aritmética simples: a do custo de exclusão. Perde-se renda individual, perde-se arrecadação fiscal, perde-se inovação. E os estudos que estimam o impacto macroeconômico dessa exclusão lembram: jogar gente fora do mercado é jogar crescimento no lixo. É ruim para quem fica do lado de fora — e péssimo para quem jura estar do lado de dentro.
É por isso que, quando me pedem “dicas” de investimento para quem vive com alguma deficiência, devolvo com três perguntas de bolso:
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Seu dinheiro trabalha com você ou contra você? Se a instituição exige operações inacessíveis (a tal selfie salvadora do mundo, por exemplo) e não oferece alternativa, troque a instituição, não troque sua dignidade.
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Sua reserva respeita seus ciclos? Quem convive com barreiras externas imprevistas precisa de liquidez redundante — duas camadas de colchão: a tradicional e a “tática”, para emergências de acessibilidade (equipamento que quebrou, transporte adaptado que falhou, reforma urgente que precisa de profissional específico).
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Sua estratégia é legível para quem te apoia? Autonomia não exclui colaboração. Tenha seu manual de bolso: senhas geridas com segurança, poderes delegados com limites, instruções claras para substituição de tarefas em caso de crise. Isso é risco operacional reduzido — e paz de espírito aumentada.
Você, leitora e leitor que me acompanham no Dinheiro Que Me Veja, sabem que eu me divirto debochando dos mantras da “mentalidade milionária”. Este, por exemplo: “o mercado recompensa quem quer mais”. Aham. O mercado recompensa — com juros compostos — quem constrói sistemas que funcionam. E sistemas que funcionam são, por definição, acessíveis. O resto é palco e fumaça.
Querem um roteiro de ação, já que estamos em clima de lista?
— Para bancos e corretoras: Desenhem para o uso extremo. Se funciona para quem navega por leitor de tela ou por teclado, funciona para todo mundo. Revisem biometria e KYC com caminhos alternativos equivalentes. Treinem o atendimento para apoiar, não escolarizar. E publiquem relatórios de acessibilidade sem perfume.
— Para seguradoras: Atualizem a régua de risco. O risco está menos na pessoa e mais no contexto inacessível. Precificação que penaliza condição em vez de ambiente é anacronismo — e litigiosa.
— Para legisladores e órgãos de supervisão: Façam da acessibilidade um requisito prudencial. Se uma instituição não garante continuidade operacional para todos os perfis, ela é sistemicamente frágil. Ponto.
— Para empresas: Remuneração variável atrelada a métricas de inclusão mensuráveis (não “palestra e foto”): tempo de resolução de barreiras, percentual de produtos com conformidade testada por usuários reais, adoção de protocolos de autonomia patrimonial.
— Para quem investe: Incluam acessibilidade como critério de análise. Governança que não governa para todos é risco material. Cobrem no RI, perguntem no call, votem em assembleia. Dinheiro que não enxerga é o seu — então, abra os olhos do capital.
Há um detalhe que os números não contam, e que me interessa mais do que qualquer curva: acessibilidade é sinônimo de tempo devolvido. É a hora que você deixa de gastar traduzindo um aplicativo hostil. É o deslocamento que você não precisa refazer porque o prédio tem barreiras. É o ciclo de renda que deixa de ser arrancado por taxas de “serviços especiais” que só existem porque o serviço comum não te atende. Tempo devolvido é juros compostos de vida.
E sim, o debate estatístico vai continuar. Uns dirão “são 7%”. Outros, “são 9%”. Haverá quem lembre — com razão — que os números oficiais dependem do instrumento, do corte, da coragem de perguntar certo. Há controvérsias e lacunas. Mas há também consenso suficiente para agir: a escala é imensa, o potencial é óbvio, a negligência é cara. O mundo inteiro reconhece a dimensão — e quem duvida, está convidado a ler as referências que colocam preto no branco a magnitude global do tema.
No final das contas, o dinheiro não precisa abrir os olhos para me ver. Precisa abrir os olhos para se ver: ou aprende a remunerar autonomia em vez de punir diferença, ou continuará queimando riqueza por desatenção. Investidora, investidor: você pode lucrar com o que o mercado costuma chamar de “nicho”. Eu prefiro chamar de maioria não atendida.
Deixo-lhe, portanto, a minha provocação preferida — aquela que eu repito quando o argumento frouxo tenta pousar com as asas do “não é prioridade agora”:
Se é caro incluir, imagine o preço de excluir — e, quando chegar a fatura, faça o favor de não cobrá-la de quem já pagou caro demais.
— Ho-kei Dube
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