O Patriota do Extrato Bancário: como a hipocrisia nacional também rende dividendos
A palavra “nação” é uma dessas invenções geniais que cabem em qualquer bolso — de preferência, no bolso fundo de quem já tem a carteira recheada. É um termo que desfila com pompa em discursos inflamados, mas que, quando você puxa a planilha da vida real, se comporta como uma célula vazia no Excel: qualquer dado que você colocar ali parecerá plausível. Para uns, “nação” é a bandeira hasteada na sacada do prédio de luxo; para outros, é o meme compartilhado com fúria em grupos de família. E, para quase todos, é o álibi perfeito para manter as coisas exatamente como estão.
É curioso como a tal “pátria amada” costuma ser invocada com ardor sempre que os privilégios do invocador correm o menor risco de sofrer arranhão. “Nação acima de tudo!” — grita o acionista, até que a mesma nação cogite tributar seus dividendos. Nesse instante, a bandeira tremula apenas no varal da lavanderia. O patriotismo, descobrimos, é um ativo de liquidez diária: está em alta quando protege fortunas, e em baixa quando ameaça os bônus de fim de ano.
A hipocrisia como ativo fixo
Não se iluda: a hipocrisia é talvez o único investimento com garantia de retorno em qualquer ciclo econômico. Enquanto nos vendem o mito da meritocracia — essa corrida em que uns largam de tênis novos e outros descalços na lama —, o verdadeiro jogo está em manter a lama exatamente no lugar. Afinal, um país desigual é um campo de provas perfeito: basta premiar meia dúzia de corredores de elite e anunciar que a competição foi justa.
E o mais perverso é que até quem deveria desejar mudanças muitas vezes se contenta em apenas trocar de cadeira no mesmo banquete desigual. É o “sonho” de ser aceito na mesa dos poderosos, não de mudar a arquitetura do salão. Subir sozinho virou o grande projeto nacional; puxar os outros é considerado perda de tempo — e de margem de lucro.
O cofre cheio de ouro e a biblioteca vazia
Como explicar que uma das maiores economias do planeta ainda não consegue oferecer escolas decentes para todas as crianças? A resposta é simples: não há interesse. É muito mais confortável manter bibliotecas vazias do que formar leitores capazes de questionar os donos do cofre. Educação universal de qualidade seria, para os controladores do tabuleiro, o equivalente a abrir capital da empresa para milhões de pequenos acionistas: risco demais, retorno de poder de menos.
Por isso, preferem que a escola pública continue sendo depósito de esperanças frustradas. Meritocracia? Só se for aplaudir o vencedor que correu com motor turbo contra quem tropeçou em buracos no asfalto.
A pátria seletiva
Patriotismo, no fim das contas, é o nome fantasia da defesa de interesses particulares. Quem já nasceu com o privilégio quer conservá-lo. Quem finalmente conquistou um lugar ao sol, deseja fechar a janela para que ninguém mais entre. Somos um país de “patriotas de ocasião”, que adoram a coletividade desde que a coletividade não inclua concorrência pelo próprio privilégio.
É como aquele investidor que jura amor eterno à Bolsa quando suas ações estão em alta, mas corre para os títulos públicos assim que a primeira manchete de crise aparece. A pátria, nesse caso, é a mesma: é só o saldo final que muda de bandeira.
Quando a hipocrisia vira índice
Imagino, às vezes, que deveríamos criar um índice oficial da hipocrisia nacional, tão bem calculado quanto o PIB ou a inflação. Ele subiria em datas comemorativas, quando políticos se fantasiam de povo em feiras populares, e despencaria na hora de votar medidas que de fato beneficiariam esse mesmo povo. Subiria outra vez em jogos de futebol — onde gritamos que somos todos iguais — e cairia na segunda-feira, quando as crianças voltam às escolas desiguais.
Esse índice teria mais poder explicativo do que muito indicador macroeconômico. Porque a hipocrisia, diferentemente da inflação, nunca precisa ser controlada: ela é o motor invisível que garante que nada mude demais.
O investimento que ninguém quer fazer
Transformar de fato uma sociedade desigual exige investimentos de longo prazo, daqueles que não dão manchete fácil nem retorno eleitoral imediato. Educação pública de qualidade, acesso universal a serviços básicos, incentivo à ciência, redistribuição real de oportunidades. Mas isso tudo soa arriscado demais para quem aprendeu a viver de dividendos da desigualdade. É preferível continuar aplicando na retórica inflacionada do patriotismo, que paga juros gordos em palanque e não exige auditoria.
O espelho incômodo
A pergunta que fica é: que tipo de “nação” estamos realmente defendendo quando erguemos o hino a plenos pulmões? A das desigualdades históricas, cuidadosamente preservadas sob o verniz da ordem e do progresso? Ou a de uma coletividade que ousa imaginar-se diferente do que sempre foi?
A resposta, temo, está mais próxima da primeira opção. E é aí que o patriotismo revela sua natureza de ativo tóxico: ele preserva os ganhos de poucos e distribui a conta para muitos. É o verdadeiro “fundo fechado” da vida nacional — acessível apenas a quem nasceu credenciado.
Conclusão provocativa
Não me interpretem mal: eu também vibro quando a seleção faz gol e me emociono com certas músicas que falam da terra. Mas aprendi a desconfiar de bandeiras que tremulam apenas quando o vento sopra a favor da elite. Patriotismo sem igualdade é como pagar caro por ações infladas: pode render aplausos no curto prazo, mas no longo só entrega prejuízo social.
No fim das contas, talvez o maior ato de amor à pátria seja justamente não cair na armadilha de confundir “nação” com o extrato dos que sempre lucraram. Defender a pátria, de verdade, seria abrir espaço para que todos possam investir nela em condições minimamente iguais.
Até lá, continuaremos sendo este curioso país onde o hino toca alto, mas as contas continuam baixas — e onde a hipocrisia, essa sim, bate recordes de valorização todos os anos.
—Ho-kei Dube
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