O Mito do Gênio e a Mentira da Curva: Quem Disse que o Sucesso É Só Questão de Esforço?

Há quem acredite que o sucesso é como uma flor rara: nasce do acaso, floresce no solo da genialidade e só pode ser colhida por quem nasceu na estação certa, com o sol no signo da oportunidade e a lua em trigono com a meritocracia. Poético. E profundamente conveniente.

Conveniente para quem chegou lá e precisa justificar o “lá” como fruto de esforço, sem mencionar os adubos generosos da sorte. Conveniente para quem nunca chegou, porque aí o fracasso se converte em injustiça cósmica, calendário ingrato, carma generacional. Como se o mérito estivesse nas estrelas — ou nas estatísticas.

Pois hoje eu venho falar deles: os “fora da curva”. Esses personagens que ocupam prateleiras de livrarias e cadeiras de conselhos administrativos. Gente que, dizem, venceu “apesar de tudo” — quando, na verdade, venceu por causa de quase tudo.

De que curva estamos falando?

O primeiro problema é a própria curva. Quem a traçou? Com base em quais medidas, em qual época, com quais réguas? Chamar alguém de “fora da curva” é pressupor que existe uma média válida, desejável, legítima. É transformar o sucesso em exceção, e a exceção em doutrina. De tanto celebrar os diferentes, esquecemos de perguntar: diferentes em relação a quê?

Na minha infância, os fora da curva eram os que passavam em matemática sem colar, os que sabiam soletrar “desnecessário” sem errar o ‘s’ e o ‘c’. Mais tarde, a régua mudou: passou a ser quem montava uma startup aos 19, falava três línguas aos 21 e vendia soluções para problemas que ninguém tinha aos 25.

Hoje, o fora da curva é quem consegue manter a sanidade mental, pagar o boleto da fatura e ainda assim ter um plano para os próximos cinco anos — sem recorrer ao horóscopo nem à inteligência artificial.

O cronograma do gênio

Dizem que alguns gênios surgem porque nasceram na época certa. Outros, porque tiveram acesso precoce a alguma tecnologia, algum mentor, alguma bolacha recheada com conteúdo premium. Há os que acreditam em ciclos históricos: quem nasceu em determinada década colheu os frutos da transição, da revolução ou da inflação.

Mas sejamos francos: se a data do nascimento define o sucesso, então o mérito vira apenas consequência de um parto bem cronometrado. A cesariana como trampolim da glória. E nesse caso, o verdadeiro herói seria o obstetra — não o empreendedor.

Ser bem-sucedido, então, seria só estar no lugar certo, na hora certa, com o umbigo recém-cortado? É como imaginar que a sorte se comporta como o transporte público: passa em horários específicos e só embarca quem estava no ponto, acordado e com o cartão recarregado.

As mil horas da obsessão

Ah, sim. Também nos vendem a ideia de que bastam dez mil horas de prática para se tornar excepcional. E eu me pergunto: quem foi que fez essa conta? Dez mil horas para quê? Para ser bom? Ou para estar tão exausto que já não se importa mais com a mediocridade do mundo?

Vamos fazer as contas. Dez mil horas são cerca de três horas por dia durante nove anos. Isso partindo do pressuposto de que a pessoa pode se dedicar intensamente a essa atividade. Agora inclua aí: trabalho, deslocamento, cuidar de alguém, crise existencial e o tempo necessário para buscar tutorial de como não surtar.

A verdade é que muitos dos nossos “fora de série” são apenas produtos de um sistema que soube reconhecer — e bancar — a obsessão. Porque praticar exige tempo. E tempo, meus caros, é um luxo que só está disponível para quem já venceu algumas batalhas invisíveis: moradia estável, comida no prato, rede de apoio. Tempo é capital. E é por isso que tantos gênios nascem em berços mais acolchoados do que a planilha quer admitir.

E os gênios invisíveis?

A cada celebridade que aparece com a aura do “gênio precoce”, há uma fila de vozes silenciosas que não tiveram o mesmo palco. Gente que era tão ou mais brilhante, mas não foi vista. Ouvida. Escolhida. Porque nasceu na geografia errada. Ou na cor errada. Ou com o nome errado. Ou com um corpo que o mercado não achava vendável.

E se você acha que isso não tem nada a ver com finanças, está olhando o gráfico pelo eixo errado. Porque o dinheiro, esse vidente das probabilidades, sempre investe onde a curva é promissora. Não onde o talento é genuíno. O capital aposta onde já se multiplicou antes. O gênio invisível, sem o capital inicial, vira estatística de “potencial desperdiçado”. E o mercado segue fingindo que talento é mérito, quando muitas vezes é privilégio empacotado em storytelling.

O marketing da exceção

Ser um fora da curva virou um produto. Vende palestra, curso, podcast. Mas o que se omite, elegantemente, é que todo “caso de sucesso” já vem embalado com o manual de exceção. O indivíduo vira símbolo. O símbolo vira regra. E a regra vira opressão: se fulano conseguiu, você também pode. A meritocracia virou influencer. E a culpa virou plano de carreira.

Quer exemplo? Veja como tratam aquela pessoa que sai da periferia e vira médica, juíza ou empresária. “Olha só, venceu tudo e todos!” — como se isso fosse comum. Como se o sistema, de tão justo, permitisse essa travessia em massa. Mas não. É um por vez. Um pinçado para mostrar que o filtro funciona. Um para calar os outros cem mil.

A exceção é usada como justificativa da exclusão. E, nesse teatro, o sucesso de um vira a mordaça do fracasso coletivo.

Talento sem contexto é fantasia

Se o sucesso fosse só uma questão de talento, teríamos gênios brotando em cada esquina. Mas talento, sem contexto, é como semente em asfalto. Não vinga. Ou, quando vinga, vem torta, trincada, exigindo mais energia para se manter viva do que para florescer.

E aí vem a pergunta que poucos têm coragem de fazer: vale a pena? Vale a pena vender sua infância, sua saúde mental, seu sono, sua alegria de viver em troca do troféu de “excepcional”? Vale a pena ser “fora da curva” se isso significa viver eternamente em curva de esforço, sem reta de respiro?

Eu, que aprendi a ver com outros sentidos, afirmo: a verdadeira exceção talvez seja ser feliz com o que se tem, mesmo sabendo o que poderia ter sido. A maior ousadia talvez não esteja em romper estatísticas, mas em recusar o script do esforço compulsivo.

Conclusão: A curva é uma ilusão que o mercado traçou

No fim das contas, o sucesso não é uma equação. É uma trama. E como toda boa trama, está cheia de cortes, improvisos, bastidores e versões não publicadas. O que se vê é só o que convém mostrar.

O sucesso não se mede por QI, por data de nascimento ou por horas cronometradas. O sucesso, minha leitora e meu leitor, talvez seja simplesmente viver com alguma dignidade, sem se vender à lógica de que só vale quem brilha. Talvez seja sobreviver com graça. Ou fracassar com estilo. Ou não querer mais competir com ninguém.

Porque às vezes, o verdadeiro “fora da curva” é quem decide sair do gráfico. Quem olha para essa planilha de exigências e diz: “Podem ficar com os índices. Eu fico com a minha estratégia 'monótona' de investimento recorrente e com minha lucidez”.

—Ho-kei Dube

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