Dormindo com o Mercado: A Nova Geração de Opióides Financeiros: Por que investimos mais em promessas do que em vida real?
Existe dor que dói. E existe dor que sustenta.
A primeira nos faz gritar. A segunda, investir.
Na vitrine da farmácia da alma contemporânea, os comprimidos deixaram de ser brancos e ovais. Agora têm forma de gráfico, voz de mentor digital e cheiro de eucalipto institucional. São podcasts que prometem “mudar sua vida financeira em 3 passos”. São workshops de “mindset de abundância” com preço promocional em doze vezes. São CEOs que acordam às 5 da manhã para correr e fingir que o mercado é justo. São anestesias performáticas — e nem precisam de receita.
Ninguém diz, mas quase todo mundo sabe: o mercado financeiro virou o novo opioide das massas. E o investidor moderno? Um farmacêutico emocionado, tentando receitar lucidez com bula de autoajuda.
Quando a dor não cabe no gráfico
Há quem ache que ansiedade se cura com dividendos mensais. Que solidão se resolve com um portfólio diversificado. Que envelhecer sem propósito se corrige com metas SMART.
A dor de existir não aparece na DRE da empresa. Mas está lá, embutida no valor presente dos seus planos de fuga. Na euforia do home office com burnout de fundo. Na convicção cega de que aportar todo mês é mais importante do que conversar com o filho.
O mercado criou uma escada de promessas e vendeu como rota de fuga. Mas não disse que o andar de cima é o mesmo do de baixo — só que com mais metas, mais siglas e menos ar.
O milagre da amortização emocional
Funciona assim: primeiro, você compra um curso sobre liberdade financeira. Depois, adquire um planner dourado para organizar seus sonhos. Em seguida, se endivida no cartão porque “foi uma oportunidade imperdível”. Por fim, chora de manhã e sorri no Zoom à tarde, porque a reunião tem meta de engajamento.
O mercado sabe que a dor existencial não some com café solúvel. Por isso criou substitutos: metas, rotinas, fundos imobiliários. Tudo que preencha o abismo entre uma segunda-feira insuportável e a falsa promessa da “independência”.
Você não precisa ser livre. Basta parecer produtiva.
A performance da superação com verniz de Excel
Lá está você, domingo à noite, preenchendo uma planilha colorida com a esperança de quem calcula quanto tempo falta para se aposentar aos 45. Ignora que já se aposentou emocionalmente aos 32. Quando se dá conta disso, já está com 57 primaveras passadas.
Sua carteira de ações tem mais atenção do que seu casamento. Sua agenda está cheia de metas, mas vazia de encontros. O planejamento é impecável — exceto pela parte em que você não sabe mais por que faz tudo isso.
A planilha virou altar. O aporte, um terço. A reunião de conselho é missa. Só falta um milagre contábil para amortizar a saudade de você mesma.
Fé, lucro e outros sedativos
A religião do investidor moderno é estranha. Não exige altar, mas exige backtest. Não pede dízimo, mas cobra aportes regulares. Não oferece céu, mas promete 1% ao mês, com IR incluído.
Alguns profetizam: "Você não precisa acreditar no Divino. Basta acreditar no longo prazo."
Há quem troque a esperança da eternidade por uma projeção de crescimento. Há quem substitua a fé na ressurreição por um relatório do estrategista da semana. Há quem chame isso de maturidade. Eu chamo de sedativo com bula de Excel.
Os gurus do bom comportamento
É curioso. Quando mais tudo falha, mais surgem livros dizendo que você é o problema. Que o universo não entregou porque você não foi consistente. Que a prosperidade escapou porque você não fez journaling.
A indústria do comportamento virou fábrica de culpa. Ela não te ensina a ser livre. Ensina a ser obediente, mas com linguagem motivacional. Te entrega fórmulas prontas e um espelho: “se não deu certo, talvez você não tenha acreditado o suficiente”.
Acreditar virou moeda. Esperar, investimento. Sofrer, oportunidade de branding pessoal.
E o vazio que sobra quando os gráficos não consolam?
Agora imagine: você acorda um dia e tudo vai bem. Seu saldo está positivo. Sua carteira, diversificada. Nenhuma ação caiu 10% na semana. E, mesmo assim, você sente que algo falta.
É o efeito colateral do opióide financeiro: ele promete aliviar a dor, mas cobra com a ausência de sentido.
Você olha para o futuro e percebe que o que dói não é a falta de dinheiro. É a falta de porquê. A falta de alguém. A falta de você, naquele cenário que parecia perfeito. Como pode o plano estar certo e a vida errada?
Simples: o plano foi feito para agradar o algoritmo — não a sua alma.
O mercado não é cruel. É indiferente.
E isso é ainda pior. Porque o cruel ainda se importa em te machucar. O indiferente apenas passa por cima, como uma carreta que não viu que você tropeçou tentando salvar seu fundo de emergência.
O mercado não te odeia. Só não te conhece. Ele não está testando sua fé. Só está tentando lucrar com sua compulsão por controle.
Você não está sendo punida. Só está sozinha numa estrada que prometeram ser de mão dupla — mas que sempre teve pedágio emocional só na ida.
Talvez o remédio seja outro
Não, não estou propondo largar tudo e viver de chakra e suco detox. Também não estou dizendo que o dinheiro não importa. Importa, e muito. Principalmente para quem sempre teve que fazer contas antes de sonhar.
Mas talvez a gente precise rever a dose.
Diminuir o barulho. Rejeitar a anestesia pronta. Ouvir mais a dor antes de silenciá-la com promessas de "milhão até os 40". Quem sabe aceitar que algum sofrimento é mesmo irredutível — e ainda assim, suportável.
Talvez o que precisamos não é de mais uma fonte de renda. É de uma fonte de sentido.
Final sem receita — só prescrição de coragem
E se você abrisse hoje o home broker e, no lugar da cotação, visse seu próprio rosto? E se no lugar do “dividendo futuro” aparecesse a pergunta: “para quê você está construindo tudo isso?”
E se você descobrisse que seus herdeiros vão vender tudo na primeira baixa — e não vão nem lembrar do seu ticker favorito?
A dor de existir não tem ticker, não tem gráfico e não tem hedge.
Mas tem nome. E coragem para chamá-la.
Porque fingir que não dói é lucrativo. Mas aceitar que dói… talvez seja libertador.
— Ho‑kei Dube
Quem precisa abrir os olhos é o dinheiro. Eu só preciso não dormir no ponto.
Nota: a palavra journaling é usada de forma crítica e irônica para se referir à prática contemporânea de escrever em um diário como ferramenta de autoconhecimento, manifestação ou organização emocional e mental. Mais especificamente, no universo do coaching de prosperidade, autoajuda e finanças de palco, journaling virou um dos muitos rituais quase místicos atribuídos ao sucesso. Ou seja:
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Se você não ficou rico, é porque não fez journaling direito.
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Se o universo não conspirou a seu favor, é porque seu caderno estava em branco.
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Se sua vida financeira está uma bagunça, talvez você devesse ter escrito mais gratidão no seu planner de couro ecológico.
A crítica embutida na frase é clara: há uma transferência de responsabilidade sistêmica para o indivíduo, como se a falta de prosperidade financeira fosse culpa exclusiva de um hábito não praticado com disciplina — no caso, o journaling. Em suma, journaling aqui representa mais um item no receituário ilusório de soluções simplistas, vendido como se fosse milagroso — e usado como sedativo ideológico para a dor de existir (e de não consumir o suficiente).
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