Quando a Verdade Vira Estimativa — E a Estimativa Vira Propaganda: A Era da Pós-planilha!
Não é de hoje que eu desconfio de quem fala de economia com euforia. Já me acostumei com as manchetes de milagre e com os telejornais que abrem com “PIB cresce acima do esperado” como se o esperado fosse um mantra divino, e não uma média aritmética feita por analistas com excesso de café e escassez de dúvida.
Mas nos últimos tempos, minha cara leitora, meu caro leitor, até mesmo essa previsibilidade pueril ganhou um ar de teatro trágico. Os números continuam saindo das planilhas, é verdade, mas agora saem trêmulos, com medo de apanhar no corredor. A estatística, antes austera e meticulosa, virou personagem de novela das seis: pressionada, silenciada e, em alguns casos, substituída por versões mais “palatáveis” para o gosto do chefe do dia.
Vivemos a era da pós-planilha. Aquela em que os dados não servem para entender a realidade, mas para justificar o roteiro.
Verdade sob demanda e Excel com censura
Imagine um mundo onde a inflação só existe se você admitir que pagou mais caro na feira. Onde o desemprego é resolvido desligando o site da pesquisa. Onde a desigualdade diminui porque se resolveu trocar a palavra por “mobilidade”. Bem-vinda à República do Dado Conformado — onde as estatísticas não retratam o país, mas os desejos do mandatário da vez.
A verdade, essa senhora sisuda que um dia foi referência, agora vive escondida numa pensão de quinta categoria, sob o nome fictício de “Indicador Geral de Otimismo”.
E por que isso importa para quem investe, para quem planeja, para quem — como eu — já viveu o suficiente para saber que uma boa planilha também pode mentir? Porque o mercado precisa de confiança. E confiança, meu bem, é como virgindade: difícil de provar, fácil de perder e impossível de simular.
Quando os dados são manipulados para agradar egos, quem paga a conta é quem acreditou neles.
O PIB Sorri, Mas o Carrinho Está Vazio
Outro dia, ouvi uma dessas frases que se dizem com autoridade de enciclopédia, mas conteúdo de rótulo de shampoo: “A economia está em crescimento sólido”. Olhei para o lado e perguntei, em voz baixa, para minha assistente virtual plugada na tomada: “Qual parte da economia? O lucro dos bancos ou o feijão no supermercado?”.
Porque o número agregado, esse colosso matemático que abriga toda a população em sua barriga estatística, costuma esconder mais do que revela. O PIB cresce, mas a padaria do seu bairro fecha. O desemprego cai, mas o emprego bom desaparece. A renda média sobe, mas o salário seu — esse mesmo, o cansado — estagna como promessa de campanha.
Quando os dados se tornam peças publicitárias, o investimento vira aposta. E apostar com base em informação falsa é o equivalente financeiro a cruzar uma passarela de vidro rachado: pode dar certo, mas só até o último passo.
A Planilha que Ria dos Analistas
Conheci um investidor que dizia que confiava mais em sua intuição do que nos dados do boletim oficial. Achava graça nos relatórios trimestrais, como quem lê horóscopo do jornal. Um dia, me confidenciou:
— Comprei porque o governo disse que a economia estava crescendo.
— E como está sua carteira hoje?
— Crescendo… em amargura.
Não culpo o homem. Ele, como tantos, acreditou naquilo que chamam de “sinais do mercado” — sem saber que, naquele momento, os sinais eram fabricados por um painel de luzes instalado na redação de um gabinete. As luzes piscavam. Os papéis subiam. A verdade fugia pela escada de incêndio.
E não, não se trata de paranoia. Trata-se de política, poder e a boa e velha vaidade institucional — aquela que acha que, se os números não condizem com o discurso, o erro está nos números.
Econometria em tempo de censura
Você já tentou medir a temperatura de um paciente enquanto ele segura o termômetro com a mão? Pois é isso que acontece quando os governos controlam os instrumentos que deveriam avaliá-los. A estatística vira refém. A metodologia, refém. E o cidadão, ah… o cidadão vira coadjuvante de um roteiro que já estreou escrito.
Quando a coleta de dados é manipulada, o erro deixa de ser técnico e passa a ser moral. E não há hedge que proteja uma carteira da erosão ética de um país.
Sim, ainda há bons servidores públicos. Ainda há técnicos honestos. Mas mesmo esses, quando pressionados a alterar, omitir ou adiar dados, tornam-se cúmplices involuntários de uma farsa de proporções econômicas. São os novos dramaturgos de um teatro estatístico — onde a tragédia se apresenta como comédia pastelão.
Confiança é como crédito: quando acaba, nem o fiador salva
A ironia é que os dados só funcionam porque confiamos neles. A taxa de desemprego só importa porque achamos que ela foi medida de forma isenta. O índice de inflação só é útil porque acreditamos que reflete o que de fato encarece a vida. Sem confiança, a estatística vira literatura fantástica — e o boletim econômico, um folhetim de ficção científica.
Investir num país com dados duvidosos é como casar com um currículo inflado: parece promissor, mas no primeiro trimestre você descobre que a “experiência internacional” era um intercâmbio de três dias no Paraguai.
Quando o Excel começa a militar
Há quem diga que os dados não mentem. Eu discordo. Dados mentem, sim — especialmente quando quem os digita tem medo de ser exonerado. Um gráfico pode ser tão manipulável quanto uma manchete. Um número pode parecer técnico e ainda assim esconder um projeto de poder.
É por isso que desconfio dos relatórios excessivamente positivos. Quando tudo parece otimista demais, geralmente tem alguém na sala com acesso ao botão de “ajustar premissas”.
A inflação “controlada” não resiste ao preço do tomate. O desemprego “estrutural” não esconde o desalento do jovem de periferia. E o superávit fiscal não passa de adorno quando o Estado corta investimento em saúde, educação e, ironicamente, no próprio instituto de estatística.
O investimento cego não é o meu tipo de cegueira
Quando eu perdi a visão, perdi o luxo de confiar no que vejo. Mas ganhei o rigor de confiar no que penso. E pensar exige desconfiar — inclusive dos dados que me apresentam. Porque a verdadeira lucidez não está em aceitar planilhas com selo oficial, mas em perguntar: “a serviço de quem foram feitas?”.
Afinal, o dado não é neutro. Nunca foi. Ele carrega quem o coleta, quem o interpreta e — principalmente — quem se beneficia com ele.
Conclusão: O Silêncio dos Números Também Grita
E se você ainda duvida, permita-me um exemplo doméstico — literal e estatístico. Sou cega, portanto, pessoa com deficiência, o que em qualquer classificação jurídica séria é considerado deficiência severa. Durante o Censo de 2022, fui entrevistada por telefone por um recenseador. Respondi gentilmente às perguntas, até perceber algo curioso: em momento algum ele perguntou se na minha residência havia uma pessoa com deficiência. Resolvi perguntar. A resposta? “Apenas uma minoria das residências foi selecionada para o questionário completo.” Sim, havia um questionário mais amplo — e, vejam só, não fui incluída. Nem eu, nem meus vizinhos, como fui sondar depois com aquele apetite cívico que só a desconfiança inteligente proporciona. Resultado: um dos dados mais cruciais para políticas públicas no país — o número real de pessoas com deficiência — continua escorregando entre as estatísticas. Porque o que não se mede com rigor, não se conhece com verdade. E o que não se conhece com verdade, não se cuida com decência.
Não é preciso que a estatística grite para ser ouvida. Basta que ela seja confiável. Basta que ela se mantenha firme diante da pressão, imune às vontades do turno que ocupa o gabinete.
Mas quando o dado se curva, quando o gráfico se recalibra para parecer bonito, quando a planilha sorri no palanque... então, minha cara leitora, meu caro leitor, prepare-se: o mercado ainda não caiu, mas a verdade já foi soterrada.
E, como sempre, quem precisa abrir os olhos não sou eu. É o dinheiro.
— Ho-kei Dube
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