A Escola Prometeu um Futuro — E Entregou um Ponto Facultativo (por que o aprendizado virou linha de produção e o diploma, atestado de obediência estilizada?)
Dizem que a escola é o lugar onde tudo começa. Discordo. A escola, como temos hoje, é o lugar onde tudo se interrompe. É lá que se aprende a silenciar a pergunta, decorar a resposta e fingir que entendeu. O saber vira escada, mas com degraus de papelão molhado. E, no topo, há um diploma — que, com sorte, serve como QR code para um crachá provisório e, com azar, como enfeite plastificado no fundo de um currículo digital que ninguém lê.
Mas vamos por partes. Não é que eu desgoste da ideia de escola. Muito pelo contrário: sou apaixonada pela possibilidade de aprender, de ensinar, de trocar. O problema é que transformaram a possibilidade em protocolo. E protocolo, como todo investidor ou investidora já percebeu, é aquele documento que explica por que a empresa afundou — só que com gramática impecável.
A escola que conhecemos hoje não educa: ela certifica. Carimba o “concluído” sem jamais perguntar se foi compreendido. É um rito de passagem onde não há travessia, apenas a travessura de simular maturidade. Ensinar virou sinônimo de alimentar um sistema de metas, provas e simulações que produzem bons obedientes, não bons pensadores. E o mercado financeiro aplaude: é mais fácil vender planos de previdência e cursos de produtividade para quem aprendeu desde cedo a esperar ser mandado.
A verdade é que no colégio — com honrosas exceções — não se quer formar gente capaz de pensar o mundo. O que se quer é formar gente capaz de aceitá-lo. Afinal, se a criança que sonha com florestas for ensinada a precificar carbono, e a que sonha com revoluções for treinada para calcular a taxa interna de retorno de um protesto, teremos adultos dóceis, prontos para converter frustrações em boletos e angústias em parcelamentos.
E quem ousa discordar? Ah, esse é “difícil de lidar”, “não se adapta”, “precisa amadurecer”.
Eu, por exemplo, não me adaptei à cegueira — mas amadureci com ela. E foi justamente quando deixei de ver o quadro-negro que comecei a enxergar as tintas que pintavam essa engrenagem falida: a educação como linha de produção, a curiosidade como defeito de fábrica, o senso crítico como item opcional.
A sala de aula virou uma espécie de comitê de compliance emocional. Ali, não se questiona. Apenas se entrega. A prova? A lição? O futuro. Tudo em envelope lacrado com cola de expectativa social. “Estude para ser alguém”, diziam. Mas ninguém avisou que o “alguém” era só mais um na fila de espera para uma entrevista de emprego virtual mediado por IA humanizada, um concurso, uma vaga, uma vida plastificada com selo ISO-9001.
A escola virou treinamento para a fila. E, como toda boa fila, ela recompensa quem espera calado.
Não me espanta que os jovens saiam das aulas como saem das reuniões corporativas: com dor de cabeça, uma sensação difusa de perda de tempo e uma vontade súbita de vender tudo e abrir uma pousada em algum lugar onde o 5G não alcança — tampouco a métrica de desempenho.
A educação financeira, então, virou um apêndice pitoresco desse sistema. Ensina-se a economizar sem nunca ensinar a sonhar e desejar o bem comum. Ensina-se a investir sem nunca explicar por que o dinheiro deve servir à vida, e não o contrário. Ensina-se a pagar juros, mas não a entender o valor — do tempo, do afeto, da lucidez.
O resultado? Adultos com pós-graduação em planilhas e analfabetismo emocional crônico. Gente que sabe o que é benchmark, mas não sabe quando está sendo usada. Que aprende a calcular risco, mas não reconhece quando está sendo manipulada.
Não é à toa que o discurso do “mérito” se entranhou com tanta força nas escolas: é mais fácil atribuir o fracasso à preguiça do aluno do que à preguiça do sistema. E que sistema mais preguiçoso, esse! Incapaz de se repensar, de abrir espaço para a divergência, de incluir sem pedir desculpas por isso.
Sim, eu disse incluir. E falo com lugar de fala e de fúria refinada.
Não faz muito tempo, um gestor iluminado resolveu agendar uma reunião às vésperas do Natal. O tema? Explicar, diante da equipe inteira, por que uma profissional cega precisa de condições de trabalho diferentes. Eu, claro, fui convocada para justificar minha existência — como se ser cega exigisse atestado moral ou PowerPoint.
Fui interrompida algumas vezes pelo coordenador, que dizia: “Não precisa explicar, Ho-kei, nós entendemos seus desafios.” Entendem tanto que colocam minha permanência em votação. Sim, houve votação. Uma espécie de reality show da acessibilidade: “Você decide se ela continua no cargo ou se volta para a caixa de perguntas difíceis.”
Pois continuei. E sigo. Não porque o sistema me acolheu, mas porque aprendi a hackeá-lo com elegância e resistência.
E o que isso tem a ver com a escola? Tudo.
Porque foi na escola que muita gente aprendeu que a diferença é problema. Que a escuta é perda de tempo. Que o outro, se pensar diferente, está errado. A escola ensinou a normalizar o desconforto e a protocolar o preconceito com uma assinatura caprichada e uniforme branca passada a ferro.
O problema da escola não é o conteúdo — é o roteiro. É a ilusão de que pensar é decorar. Que aprender é acumular. Que formar é alinhar. E que quem sai da curva está atrapalhando o fluxo da planilha pedagógica.
Mas há saídas.
E não, não estou falando de metodologias mirabolantes nem de startups educacionais que prometem ensino gamificado com retorno sobre investimento em três ciclos trimestrais. Estou falando de uma educação que aceite errar. Que se permita improvisar. Que não trate a infância como um projeto de aposentadoria e a adolescência como um intervalo entre duas metas.
Uma educação que provoque perguntas em vez de entregar slogans. Que ensine a desconfiar das fórmulas prontas, inclusive as da planilha sagrada.
Você sabe o que é liberdade financeira? É poder dizer “não” para o chefe sem medo de represália. É não ter que vender a alma em 12 vezes sem juros. É poder escolher onde, como e com quem se quer viver. E isso, meus caros, não se aprende em simulados.
Aprende-se com a vida. Com a dor. Com o erro. Com a coragem de romper o protocolo.
Talvez seja por isso que eu ame tanto a ideia de escola. Não essa que temos. Mas a que ainda podemos criar.
Uma escola que não forme investidores compulsivos, mas pensadores livres. Que não normalize o lucro a qualquer custo, mas ensine a calcular o custo de uma vida sem lucidez. Que não repita fórmulas, mas multiplique epifanias.
Porque se há algo que a cegueira me ensinou, é que a luz está onde menos se espera. Às vezes no escuro da dúvida. Às vezes na penumbra de uma pergunta. Às vezes, no silêncio que interrompe o grito da obviedade.
No fim das contas, talvez ensinar não seja assinalar um caminho. Mas sim, acender uma pequena rebeldia nos olhos — ou no que houver no lugar deles.
—Ho-kei Dube
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