“Empreendedor com Ações”? Só Se For com Avental de Ironia e Balanço de Lucidez

Outro dia, entre um gole de café amargo e o amargor das manchetes econômicas, ouvi um termo que me fez levantar a sobrancelha — coisa que, a propósito, ainda faço com elegância mesmo sem enxergar. “Ser empreendedor com ações.” A princípio, achei que era mais uma dessas bobagens dignas de coach com PowerPoint e spray de autoestima barata. Mas não. A expressão veio embalada num raciocínio até coerente: a ideia de que investir em ações é como ser sócia de um grande negócio. Um empreendedor, só que sem crachá, sem dívidas trabalhistas e sem precisar sorrir para cliente chato.

Confesso: gostei da analogia. Mas como tudo que entra na bolsa (e aqui me refiro tanto à de valores quanto à de ombros), o peso dessa afirmação exige análise. Porque tem gente confundindo ser sócia com ser síndica de ilusão.

Vamos começar pelo básico: no mundo real, abrir um negócio exige estudo, suor, insônia, dinheiro e mais resiliência que influenciador em crise de cancelamento. Você faz planos, estuda localização, contrata equipe, compra máquina, negocia com fornecedor e, entre uma crise e outra, tenta não enlouquecer. É um strip-tease de ilusões feito em praça pública, com CNPJ. E você assina embaixo.

Já na bolsa, o sujeito abre uma conta em qualquer corretora colorida, digita três letrinhas e pronto: se diz empreendedor. Acha que comprando meia dúzia de ações vira sócio da Ambev, íntimo do CEO e quase padrinho do chope. Acorda achando que é Rockefeller, dorme devendo no cartão do iFood.

A mágica da liquidez — essa bênção disfarçada de tentação — faz parecer que comprar e vender ações é um jogo de videogame adulto. Com um clique, você entra e sai de empresas como quem troca de roupa pra reunião no Zoom: da cintura pra cima, parece seríssimo; da cintura pra baixo, é só cueca e ilusão.

É aí que o argumento dos “empreendedores com ações” começa a desandar como powerpoint de CEO em crise de governança. Porque ser sócio de uma empresa, meus caros, não é colocar dinheiro numa tela piscando. É se comprometer com a trajetória, com o negócio, com a vaca magra e o boi gordo — mesmo que o boi seja uma estatal gordurosa com dívidas até as patas.

Barsi, o veterano do investimento que inspirou essa filosofia, fala com convicção sobre construir uma carteira de renda como quem constrói uma empresa. E nisso, dou meu brinde de concordância. De fato, quem investe com cabeça de sócio precisa de mais do que paciência: precisa de coluna vertebral e estômago resistente. É como ser dona de um restaurante que você não pode visitar, mas que serve sua aposentadoria no cardápio.

Mas aqui vai o aviso: investir não é empreender. É prima de terceiro grau, com histórico de reuniões em feriados e almoços constrangedores. Você não tem poder de decisão, não escolhe fornecedor, não demite incompetente nem decide estratégia. Você assiste, torce e — se for esperta — lucra. Mas não confunda o camarote com o palco.

Aliás, essa mania de transformar tudo em “empreendedorismo” é uma praga pós-moderna com cheiro de mofo neoliberal. Vender brigadeiro virou “empreender com confeitaria artesanal”. Alugar bicicleta virou “empreender com mobilidade alternativa”. Comprar ações agora é “empreender com capital de risco”. Daqui a pouco, tomar café sem açúcar vai virar “empreender no jejum glicêmico de alto desempenho”.

Vamos com calma.

Investir bem é nobre, sim. É estratégico, necessário e, quando feito com juízo, rende frutos tão doces quanto jabuticaba em quintal de avó rica. Mas não precisa do glamour artificial de slogans do Instagram. Você não precisa ser “dona de empresa” pra se sentir competente. Basta ser dona do seu dinheiro, do seu tempo e das suas decisões. O resto é ruído de mercado.

E já que estamos falando em aportes — essa palavra que virou a pantufinha de conforto dos investidores pacientes — vamos falar sobre constância. Porque o que realmente diferencia um investidor sério de um turista da bolsa é a capacidade de manter o plano quando tudo grita pelo contrário. É fácil aportar quando o Ibovespa sorri. Quero ver manter o aporte quando o mercado está de TPM, a bolsa desaba e o noticiário econômico parece roteiro de apocalipse bíblico.

Nesse sentido, sim, o paralelo com o empreendedor faz sentido. Porque o bom empreendedor sabe que vai sangrar. Que vai aportar não só dinheiro, mas sanidade. Que vai assistir o caixa secar, o cliente sumir e o contador fugir. E ainda assim, vai continuar.

Agora, se você está na bolsa só porque viu um vídeo dizendo que “renda passiva é o novo ouro”, me faça o favor de sentar ali, com os influencers que acham que long short é nome de corte de cabelo.

Construir uma carteira de renda é como cultivar uma árvore frutífera: demora, exige cuidado, paciência, e, às vezes, até uma poda dolorosa. Mas um dia, se você tiver feito tudo certo, ela começa a dar frutos — pingados no começo, mas cada vez mais consistentes. E sim, você poderá colher sem matar a árvore. Isso é riqueza de verdade: aquela que cresce com o tempo, em vez de evaporar no calor da próxima “oportunidade imperdível”.

Mas para isso, é preciso lembrar: ações não são figurinhas de álbum, nem bilhetes premiados. São pedaços de negócios reais, com pessoas reais, problemas reais e resultados... eventualmente reais também.

E aqui entra minha parte favorita: a ironia.

Porque tem gente que diz que investe como sócio, mas se comporta como aquele ex descompensado que termina o namoro e ainda assim fica olhando o status no WhatsApp. Compra ação e, a cada queda de 1%, já corre pra saber se a empresa “ainda vale a pena”. Como confiar no futuro de uma empresa se você não aguenta nem a oscilação de ontem?

Se você quer ser sócio, aja como tal. Estude, acompanhe, entenda o setor, os riscos, o modelo de negócio. Tenha paciência. Invista com cabeça de quem planta, não de quem caça. E, acima de tudo, não espere glamour. Não há champanhe no início da jornada, só boleta e análise fundamentalista.

Mas ó — não precisa se martirizar. Ser investidora, mesmo cega, é como andar de metrô em horário de pico: você precisa saber para onde vai, não se importar com empurrões e, principalmente, manter a bolsa (literalmente) bem agarrada.

Se quiser romantizar o ato de investir, vá em frente. Só não se iluda com a ideia de que ser acionista transforma automaticamente você numa visionária de Wall Street. A verdade é mais crua, porém mais honesta: você está ali tentando construir alguma autonomia financeira, com as ferramentas que tem, entre planilhas e boletos.

E isso, minha cara, já é mais do que muita gente consegue fazer.

Portanto, da próxima vez que ouvir alguém dizer que é “empreendedor com ações”, pergunte gentilmente: “Com quantas assembleias no lombo e quantos balanços lidos você virou esse empreendedor?”. Se a resposta vier em forma de vídeo de TikTok, sorria com compaixão. Afinal, ser sócia de um negócio exige mais que um clique — exige uma cabeça que não se deixa seduzir pelo barulho do mercado, mas se compromete com o som moroso dos dividendos pingando, mês após mês, como sinfonia silenciosa da paciência.

E se você conseguir fazer isso tudo com humor, consciência e uma dose saudável de ironia — então, talvez, esteja mesmo no caminho certo. Porque ser sócia exige mais que dinheiro: exige alma de quem já entendeu que prosperidade de verdade não aparece nos Stories. Ela cresce no silêncio dos aportes que ninguém vê.

— Ho-Kei Dube
(mas o dinheiro é quem precisa abrir os olhos)

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